Esses são os discos mais ouvidos do mês de dezembro nesse bat-canal, segundo o Spotify.
O escolhido da vez foi 🥁 rufem os tambores 🥁 20 Super Sucessos (2014) da Vanusa.
A edição deste mês atrasou um pouquinho, quase não saiu e como a motivação faz parte do assunto de hoje, vou explicar. No começo de 2022, sai da cidade em que morava, Dourados/MS, e retornei para a minha cidade natal, Naviraí. Não apenas voltei para um local em que não conhecia mais nada nem ninguém, mas também para as lembranças e para a casa da minha mãe. O motivo? Basicamente a vida financeira, mas também uma vontade de passar mais tempo com mamãe, já que vivemos muito tempo longe.
Não foi fácil, e essa frase resume toda a história. Foi difícil me adaptar à dinâmica de morar com mamãe de novo, e é claro que foi custoso para ela também. Até meus gatos adoeceram. E sabe o que é pior? Mesmo tendo menos despesas, a vida financeira custou muito a melhorar. E aí, quando as coisas pareciam estar se encaminhando, o dinheiro começou a entrar um pouco mais e nós duas estávamos convivendo melhor, sabe o que eu fiz? Me mudei de cidade novamente, no começo de 2023. Simplesmente porque eu quis, porque eu queria tentar algo novo, um emprego novo, um lugar novo. Essa é a primeira newsletter que escrevo da minha nova cidade, Maringá/PR. Bem, nem tão nova assim, eu já morei aqui antes. Só que agora ela é nova pelo retorno e velha porque já nos conhecemos.
Algo que aconteceu, durante todas essas mudanças, foi um processo intenso de morte e renascimento. A morte não é apenas a ausência daquela substância que anima o corpo humano e o faz caminhar por aí, e conversar, e se relacionar, e fazer as coisas mais medonhas ou mais estupendas do mundo. A morte é algo que nos acompanha, que invariavelmente é doloroso, ainda que traga coisas boas quando o lamento passa, e que é necessária para que possamos continuar vivendo. A morte é parte da vida e para morrer basta estar vivo. Essas mudanças pelas quais passei no último ano foram planejadas e desejadas, mas não menos difíceis por isso e representar, de certa forma, a morte de coisas para que novas pudessem nascer.
E nesse papo todo de morte é que eu quero puxar o gancho para falar sobre a Vanusa, uma grande cantora brasileira que eu só conheci devido às notícias sobre sua morte. Foi durante a pandemia, em 2020, que mamãe me mandou o link de uma notícia contando que Vanusa morreu esquecida em uma espécie de asilo, aos 73 anos.
Vanusa Santos Flores nasceu em 1947, no estado de São Paulo, mas viveu seus primeiros anos em Minas Gerais. Em 1966, se apresentou em um programa de música chamado O Bom, da extinta TV Excelsior, e em seguida foi contratada pela gravadora RCA Victor. Em 1968, gravou seu primeiro disco, intitulado apenas como Vanusa no qual compôs quatro das faixas, algo incomum para época visto que, em geral, as mulheres apenas interpretavam músicas escritas por homens.
Em 1973, a cantora lança seu quarto disco, também chamado de Vanusa. A capa é absolutamente interessante: Vanusa, com seus tradicionais cabelos loiros na altura dos ombros, sentada em uma espécie de cadeira em formato de dinossauro, em frente a uma lareira, sob um carpete vermelho. Quando da sua morte, a faixa What to Do foi ressuscitada porque o seu riff de guitarra foi “copiado” por ninguém mais ninguém menos do que Tony Iommi, do Black Sabbath, na faixa Sabbath Bloody Sabbath. A canção gravada por Vanussa saiu alguns meses antes do disco dos ingleses e a verdadeira história sobre como tudo aconteceu é meio nebulosa, até hoje não se sabe se foi um plágio ou não. Vanusa disse em entrevista que não achava se tratar de uma cópia, mas apenas uma coincidência.
E assim, durante a década de 70 e 80, Vanusa lançou diversos trabalhos e fez bastante sucesso, mas ao final desse período, sua voz potente e marcante foi esquecida. A cantora teve muitos problemas relacionados a dependência de remédios e a depressão, razões que com certeza afetaram sua carreira.
Em 2009, ao interpretar a letra do Hino Nacional do Brasil em uma solenidade da Assembleia Legislativa de São Paulo, errou a letra e virou meme na internet. Esse evento particularmente triste e ingrato, ignorava completamente a grande cantora e mulher que Vanusa era, assim como os problemas de saúde que enfrentava na época. A própria disse em entrevista de 2015 ao Uol, que apesar do trágico momento ter se transformado em meme, esse foi o motor que fez com que novas gerações a descobrissem. O entrevistador questiona se ela cantaria novamente o Hino, e Vanusa responde:
Não. Se eu cantasse, eu ia cantar muito puta da vida. Muito puta. Desculpa falar isso. O Brasil não está fazendo jus ao hino nacional. O hino, aliás, está tão velho, podia botar outra letra, está super defasada. Não é um 'gigante pela própria natureza', é um gigante que está morrendo. O Brasil precisava ser mais risonho e límpido.
Nessa mesma entrevista, comenta brevemente sobre se considerar feminista e sobre parte de sua vida. É tão interessante o que ela fala, que vou deixar aqui para vocês lerem.
Sempre me considerei feminista, até quando não sabia o que isso queria dizer. Eu apanhei muito do meu pai. Minha mãe e minha irmã eram cordatas. Eu, não. Eu tinha 16 anos quando meu pai me deu uma surra. Eu estava caída no chão, mas olhei para ele e disse: 'No dia que eu fizer 21 anos e o senhor vier me bater, eu vou revidar'. Com 21 anos e 19 dias ele veio me bater. Eu já tinha aprendido a lutar caratê e jiu-jítsu. Eu dava com os dois pés no peito dele e ele caía. Aí ele disse: 'Noemia [mãe de Vanusa], arruma minha mala que eu vou embora'. Eu disse que ela não era mais empregada dele. Ele fez a própria mala e foi embora. Foi a minha maneira de começar a enfrentar o machismo. Nos casamentos, tinha essa coisa do ciúmes, eu viajava com a minha banda e meus maridos ficavam loucos.
Em 2015, a cantora lança o álbum Vanusa Santos Flores, produzido por Zeca Baleiro, que a convidou para o trabalho. Esse foi seu último disco. Ao total, Vanusa lançou 20 discos.
Quando morreu aos 73 anos, em 2020, morava em uma espécie de asilo no litoral paulista. Vanusa sofria de uma doença que causava demência, mas a causa da morte foi insuficiência cardíaca. Somente na sua morte que a grande mídia lembrou-se de alguém tão importante para a música brasileira e, querendo ou não, lhe deu a oportunidade de renascer.
Dentro do reinado de Hades, o deus do submundo, as almas precisam atravessar o rio Lete, o esquecimento, cujas águas correm nas cavernas de Hýpnos, o sono, que, por sua vez, é irmão de Thanatos, a morte encarnada. Durante a travessia, as almas devem beber as águas do rio Lete para se esquecerem do mundo dos vivos, vislumbrando assim sua nova morada. Em frente a Lete, correm as águas do rio Mnemosyne, a memória, da qual as almas também devem beber para que sejam capazes de recordar da sua existência na vida após a morte, completando finalmente a transição do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Assim, vemos associados a um mesmo evento, Thanatos, a morte, Lete, o esquecimento, e Mnemosyne, a memória, demonstrando que a morte física não significa o fim da vida, pois, se o sujeito permanece na memória dos vivos, por consequência ele continua a viver. O aniquilamento da existência é compensado pela memória, morrer é ser esquecido pelos vivos (trecho do meu artigo Memória e vida eterna em A Morte lhe cai bem, para a Querido Clássico).
⭐recomendações que ninguém pediu⭐
❤️Aladdin Sane (1973) do David Bowie
um álbum que embalou minhas caminhadas às 5h da manhã. pode servir para embalar as suas também.
❤️ Hunting High and Low (1985) do a-ha
um álbum para se imaginar em badaladas pistas de dança nos anos 80.
❤️ Strangeways, Here We Come (1987) do The Smiths
um álbum para odiar o Morrissey ora por ele ser um grande compositor, ora por ser um babaca de marca maior.
❤️ …And Soul It Goes (1986) do Century
um álbum para ninguém botar defeito com baladas dignas de novela.
❤️ Novo Aeon (1975) do Raul Seixas
um álbum para pensar sobre deus, o diabo, o capitalismo e a monogamia.
É isso por hoje, tchau.
E nesse papo todo sobre morte, aproveito para contar uma novidade. Há um tempo tenho pensado e elaborado uma nova newsletter chamada cidade do pé junto. Nela, quero falar sobre morte, cemitérios e tudo que envolve esse mundo. Se te interessar, assina lá. Ainda não saiu nenhuma edição, planejo a primeira para algum dia em fevereiro.
💰reclames do plimplim💰
Se você curte meus textos e gostaria de me pagar um cafezinho, considere apoiar a resenhas que ninguém pediu financeiramente.
Você pode fazer isso:
💰através do pix: vicresenhaas@gmail.com
💰fazendo suas compras na Amazon por meio do meu link de associado clicando AQUI!
Eu me lembrei demais de Mulheres que Correm com os Lobos na sua introdução, por causa desse ciclo do vida-morte-vida. E você indicar Bowie no final, eu ia comentar justamente que as fotos da Vanusa me lembraram o camaleão, rs. Confesso que nunca parei pra ouvi-la e que infelizmente a conheço do meme do hino nacional... seu texto me fez perceber que eu preciso parar e dar atenção pras nossas mulheres brasileiras! Foi um puxão de orelha, obrigada por isso!
E muito legal a iniciativa da nova newsletter, falar sobre morte é essencial pra própria vida. Desde que li os livros de Caitlin Doughty entendi melhor isso e consigo encarar de forma diferente o assunto.
Adorei conhecer melhor essa musa. Infelizmente as mulheres da música brasileira não tem espaço na nossa história né? 😭