Nessa edição especial da resenhas que ninguém pediu falo sobre memória, infância e sonho. Conforme você, caro leitor, avançar perceberá que eu falo muito mais de sonho, mas os três elementos não deixam de estar conectados. Essa edição especial faz parte do Newsletteraço, uma ação entre escritores de newsletter nascida da vontade de escrever, primeiramente, mas também de divulgar uns aos outros e explorar outras possibilidades de escrita. Na listagem abaixo você encontra todos os participantes da ação e seus respectivos espaços.
Victória escreve a resenhas que ninguém pediu
Lethycia Dias escreve a Uma mulher que escreve
Leon Nunes escreve a O Substack de Leon
Carol Vidal escreve a Devaneios Criativos
Cadu Carvalho escreve a Tipo Aquilo
Júnior Bueno escreve a cinco ou seis coisinhas
Fernando Alves escreve a Futebol no Fim do Mundo
Lívia Reis escreve a Colcha de Retalhos
Danilo Heitor escreve a Antes do fim
Fernando Alves escreve a Futebol no Fim do Mundo
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Cadu Carvalho escreve a Tipo Aquilo
Denise Gals escreve a Aprendiz de Escritora
Karine Canal escreve a Kverso
Patricia escreve a Uma com a Terra
Mia Sodré escreve a Querido Clássico
Início
As coisas das quais nos lembramos e sobretudo, como nos lembramos, nos acompanham por toda vida, assim como nossa infância e os nossos sonhos. Trabalho com crianças muito pequenas, entre 3 e 4 anos de idade e gosto de me referir a elas dessa maneira: crianças muito pequenas. Elas não são apenas crianças, são crianças muito pequenas. Acho essa diferenciação importante porque para mim, no meu conhecimento empírico, uma das diferenças delas para as crianças maiores é a capacidade de se recordar conscientemente dos eventos que viveram. Dizem que é exatamente nessa idade, entre os 3 e 4 anos que as crianças começam a organizar as primeiras memórias das quais serão capazes de relatar mais adiante na vida. É claro também, que há vários tipos de memória e é por isso que elas não se esquecem do rosto de suas mães e nem do meu ao chegar na escola todos os dias.
Entendo que a forma como as crianças são tratadas, as coisas que elas observam no dia a dia, os exemplos, e a escuta moldam quem elas serão no futuro ainda que essas memórias não possam ser recuperadas imageticamente. Essas coisas seriam, ainda assim, uma memória? Se não posso me recordar, é uma memória? Ou memória é somente aquilo que posso descrever?
Segundo o Dicionário Michaelis online memória é:
Faculdade de lembrar e conservar ideias, imagens, impressões, conhecimentos e experiências adquiridos no passado e habilidade de acessar essas informações na mente.
Função psíquica de um indivíduo de reproduzir um estado de consciência passado e reconhecê-lo como tal.
Termo geral para denominar a função do sistema nervoso com a capacidade de reconhecer, evocar, reter e fixar as experiências passadas.
O produto de experiências passadas que permanece no espírito e serve de lembrança; lembranças, reminiscências, recordações.
O que se anota para não esquecer; apontamento, lembrete.
Acho que as crianças não criam as memórias que elas desejam criar, elas criam as memórias que os adultos as permitem criar e por isso é tão importante ter cuidado com esse processo. Nem sempre é possível prever como situação x ou y será interpretada e como isso vai reverberar no futuro, mas temos conhecimento acumulado suficiente para escolher como agir, salvo todas as exceções imagináveis. Mas e os adultos? Será que a gente cria as memórias que desejamos criar?
No capitalismo alguns conseguem criar as memórias que desejam, enquanto que outros apenas sonham. Alguns certamente tem memórias de viagens pelo mundo, enquanto que outros apenas sonham com elas. Mas aqueles que já realizaram, também, em certa medida, sonharam um dia em criar essa memória. Quando digo isso, não me refiro a um idealismo barato do tipo trabalhe enquanto eles dormem, e sim às condições materiais de transformar sonhos em realidade e, posteriormente, memórias. Me referi aqui a uma viagem, que pode parecer algo simples, bobo. Sinceramente, não acho que seja. Viagens são eventos que têm grande potencial de transformar a nossa sensibilidade diante do mundo e dos outros, que podem emocionar; emoção, aliás um sentimento tão em falta.
Talvez a dureza da vida tenha nos ensinado que sonhar é algo infantil, besta e sem sentido, mas ao retirar a nossa capacidade de sonhar o capitalismo também nos tirou a possibilidade de escapar dele. Afinal, sonhar não é uma maneira de imaginar uma realidade diferente? Nas minhas sessões de análise tenho tido muito essa conversa. Sempre tive uma certa vergonha dos meus sonhos, especialmente nos que me exigem certa exposição. Sonho em ser uma grande escritora, em ter livros publicados, mas tenho medo das críticas, da qualidade do que escrevo e de ofender alguém que amo. Sonho em viver grandes amores, mas quando a possibilidade deles aparece me retraio aflita pelos deslocamentos que isso pode me causar. Seria o medo outro componente do sonho? Será que é por isso que eles nem sempre se realizam?
Não acredito que seja apenas isso. Como eu disse no parágrafo anterior, o capitalismo nos rouba a vontade e a capacidade de sonhar. Ao nos imergir em uma lógico completamente doentia de trabalho, somos roubados do tempo de imaginar e de sonhar. Afinal de contas, sem imaginação, não é possível sonhar. Imaginar um mundo diferente, em que vivemos em uma sociedade que produz e trabalha para suprir suas verdadeiras necessidades e que usa a tecnologia a seu favor, para ter mais tempo livre e não ao contrário, é essencial para sonhar com um mundo melhor. E como transformar isso em realidade e posteriormente em memória para contar a aqueles que ainda não nasceram? Eis aí a tal da condição material. Não vou esquadrinhar essa questão agora, não é minha intenção, quero apenas plantar essa semente.
Sonhos Cinematográficos Vol. I
Buscando inspiração para escrever esse texto decidi ver um filme do David Lynch. Não sou especialista em sua obra, mas tenho gostado de conhecê-lo. O filme que decidi ver foi Mulholland Drive (2001), traduzido como Cidade dos Sonhos. Acho que finalmente entendi o que me perturba nas narrativas do Lynch, elemento que me afastou dele durante um tempo e agora tem me capturado: a falta de linearidade que, claro, se assemelha muito aos sonhos. Me parece que nada tem começo, meio ou fim nas suas histórias e o nosso cérebro, ou talvez seja o meu, não o seu, parece procurar encaixar essa histórias dentro de uma certa sequência.
Por falar em Lynch, me lembrei do filme Encaixotando Helena (1993), dirigido pela filha do diretor, Jennifer Lynch. Seguindo os passos do pai, o teor onírico do filme é evidente, ainda mais quando nos deparamos com o plot twist ao final do enredo. Na história, o médico Nick (Julian Sands) nutre um sentimento completamente doentio, confundido por ele com amor, por Helena (Sherilyn Fenn), com quem dormiu apenas uma vez. Helena, por outro lado, vive sua vida sexual de maneira prazerosa e despreza Nick imensamente. Após diversas tentativas de conquistar Helena, em um dia comum, Nick consegue atraí-la para sua mansão, que é um pouco afastada da cidade. Quando Helena está indo embora, ela é atropelada por um carro. O que se desenrola a seguir é que Nick, por ser médico, decide cuidar dela em casa e sua primeira ação é cortar ambas as pernas de Helena, alegando que ela precisava disso para sobreviver. Helena, apesar da vulnerabilidade, nunca se deixa abater por Nick e aponta inclusive que um dos motivos por ela não querer mais se envolver com ele é que ele é um homem reprimido sexualmente e incapaz de fazer uma mulher gozar. Nick então corta os braços de Helena e a mantém apenas como um torço que é dependente dele para absolutamente tudo. No final do filme, descobrimos que ao sofrer o acidente, Nick chamou uma ambulância e a levou ao hospital e tudo que vimos até aquele momentos era apenas seu sonho, enquanto esperava por notícias de Helena.
Penso agora sobre o que é capaz de fazer um homem sonhar em amputar os braços e as pernas de uma mulher para ter controle total sobre ela. Que tipo de sociedade criou tal desejo? É claro que no filme, essa é uma metáfora para a necessidade de Nick controlar uma mulher incontrolável e que só o aceitaria se fosse recatada e dócil. Na história, Nick também passa por uma certa redenção ao entender que seu impasse com as mulheres está também relacionado com problemas sexuais que por sua vez tem origem na maneira como ele experimentou essa temática e na sua vivência com a mãe, uma mulher exatamente como Helena. Não sabemos o que acontece com ele depois de acordar, porque o filme acaba, mas seu sonho também tem um caráter divinatório, quase oracular de lhe mostrar a verdadeira natureza das coisas.
Ainda falando sobre cinema, recentemente assisti Re-Animator (1985), um clássico do cinema trash produzido por Brian Yuzna. Sinceramente, achei o filme muito legal e possivelmente serviu de inspiração para muitas obras posteriores, entre elas o tão comentado A Substância (2024). Na trama, o estudante de medicina (louco) Hebert West descobre uma droga verde neon capaz de ressuscitar os mortos. Na tentativa de entender como administrá-lá, invade o necrotério do hospital onde estuda, junto com o amigo Dan Cain, e trás à vida mortos violentamente incontroláveis. Cada vez mais obcecado, West continua seus experimentos que escapam do seu controle. A certa altura, Carl Hill, um médico-professor-sênior, também louco, mas dessa vez pervertido, rival de West, descobre a respeito da droga e ao tentar confronta-lo, é decapitado por West. Sem pensar duas vezes, West decide reviver o doutor Hill e injeta a droga no morto degolado. Seu corpo, descabeçado, revive, foge de West e carrega sua cabeça nas mãos enquanto anda cambaleante até o necrotério do hospital em que trabalha. Chegando lá, ordena que um dos seus súditos, que nada mais nada menos é do que um dos cadáveres ressuscitados (por algum motivo ele consegue controlar os morto vivos), traga Megan Halsey (Barbara Crampton) até ele. Megan é uma moça muito jovem, namorada de Dan, por quem Hill nutre um sentimento doentio e nojento. Ao chegar no necrotério, Megan é amarrada em uma mesa, despida e o corpo do médico degolado, segura a própria cabeça com as mãos enquanto a desliza pelo corpo da menina, a lambendo e chupando enquanto ela grita em desespero por ajuda. Essa cena é, com certeza, uma das coisas mais grotescas, abusivas e repugnantes que eu já vi. É consenso entre os estudiosos do cinema de horror que o corpo feminino, o sexo e a violência são relacionados e espetacularizados, de certa maneira demonstrando como a masculinidade e o patriarcado naturalizam a associação entre esses temas. Considerando que em muitas dessas produções as mulheres são coadjuvantes e as películas são dirigidas por homens, é possível prever que as histórias podem retratam os desejos dos envolvidos. Aqui, volto ao mesmo questionamento que fiz sobre Encaixotando Helena: que tipo de desejo masculino pensaria em uma cena tão grotesca e violenta como essa, tendo uma mulher jovem como alvo? Que tipo de desejo masculino, inspirado por quem ou pelo que, sonharia com isso? Nesse aspecto, acho que as artes podem muitas vezes dar vazão a desejos que são condenados socialmente e que, nesse caso específico, devem mesmo ser, mas é importante pensar que as vontades nascem de algum lugar, há alguma inspiração.
A Matéria dos Sonhos
Há alguns anos atrás eu sonhava muito com cobras. A maioria delas se assemelhava muito com uma sucuri, mas era muito maior. Lembro que sempre me assustava porque quando a serpente aparecia no meu sonho, ela sempre encostava a sua enorme cabeça no meu rosto. Junto com elas também vinha uma espécie de zumbido e uma sensação de que algo estava me esmagando. Era tão estranho que é difícil até mesmo de descrever. Depois de um certo tempo sonhando com as cobras e a “presença”, como apelidei o terror cósmico, me acostumei e consegui, de certa forma, prever seu aparecimento, desenvolvendo uma espécie de técnica para acordar mais rápido. Também já não sentia mais tanto medo. Hoje em dia, as cobras e a “presença” se foram, não sonho mais com elas a anos. Não sei o que se resolveu em mim, só sei que elas foram embora. É engraçado, sempre gostei muito de cobras, mas tenho medo delas. Minha avó odeia serpentes e sempre contou muitos causos sobre as cobras que matou, ou tentou matar, das mais variadas formas, utilizando desde facões até revólver. Essas histórias sempre me fascinaram. As cobras são animais interessantíssimos, muito importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e frequentemente odiadas e mortas gratuitamente. São pintadas como seres malignos, que planejam matar, que perseguem, que mamam em mulheres puérperas e colocam a calda na boca de bebês recém-nascidos, mas que na verdade não perturbam nada nem ninguém que não as tenha incomodado primeiro. Contei sobre isso uma vez a um colega e ele disse que se a cobra encostava o rosto dela no meu, talvez isso fosse um sinal de carinho e não de ameaça. Isso mudou completamente minha visão sobre o sonho mudando, talvez, minha memória.
Esse sonho inspirou a construção do meu primeiro livro de contos que está em pré-venda, durante o próximo mês, na Benfeitoria. A antologia se chama Serpentes que Caem do Céu e será lançado pela editora Urutau sob o selo de fantasia Teju Jagua. Os contos de horror, terror, fantásticos - chame como julgar melhor - conversam sobre o grotesco, o horrível e a vida nesse intervalo. O conto de título homônimo ao do livro, Serpentes que Caem do Céu, conta a história de uma aliança assustadora entre mulheres e répteis.
Para adquirir o livro em pré-venda acesse o site da BENFEITORIA!
Serpentes que caem do céu é uma coletânea de textos produzida no lusco fusco de madrugadas insones. Os contos insólitos exploram animais, sejam eles humanos ou não, nas águas, nas casas, no mato, nos cemitérios e as angústias de viver e ser quem se é. Em Criame, o destino se modifica através de homem de branco que respira por guelras enquanto cava lagos. O chamado do além é a esperança cultivada por entre a vida no conto Três Irmãs, e se amarra a um semelhante reencontro violento e fraternal em A Porta. No conto Imenso, voltamos as águas e nos perdemos em meio a morte da paixão e de tudo que se sabe sobre a vida. Dente de Ouro, aprofunda a jornada pela mesquinharia familiar com um artefato valioso entre os dedos. Por fim, no conto de mesmo título da seleção, Serpentes que caem do céu, ofídios e mulheres ondulam seu caminho em meio a uma cidade pequena e indigesta. Aqui o leitor encontrará desagrado e aflição na mesma medida da piedade e harmonia em um local anômalo e fantástico.
Sonhos Cinematográficos V. II
Ainda em matéria de répteis, escrever esse texto me fez lembrar de um giallo maravilhoso dirigido por Lucio Fulci, Una Lucertola con la Pelle di Donna ou em português BR Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (1971). No filme, a conservadora Carol (Florinda Bolkan) é aterrorizada por sonhos eróticos com sua vizinha, a libertina Julia (Anita Strindberg). Os sonhos são relatados, dia após dia, ao seu psicanalista, que grava todas as sessões em fitas. Um dia, Carol relata ao psicanalista que sonhou que esfaqueava Julia com uma artefato utilizado para abrir cartas e que dois hippies a viram cometer o assassinato. Tal é a surpresa de Carol ao descobrir, nos dias seguintes, que a vizinha Julia foi morta da mesma maneira como descreveu em seu sonho. O filme narra o desenrolar dos fatos na tentativa de desvendar o mistério questionando sempre a veracidade dos sonhos, a confiabilidade do processo de análise e sanidade de Carol.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, autor do livro O Oráculo da Noite, diz que o desejo e o anti-desejo, ou seja, o medo, são as matérias do sonho. Na narrativa do filme, essa afirmação funciona dos dois lados: os sonhos de Carol com a vizinha expressam seus anseios mais íntimos, mas o seu medo reside no fato que esse comportamento não combina com sua reputação conservadora. Ao matar a vizinha, ela mata não apenas seu desejo, mas também o seu medo. Ao matar nossos desejos, matamos nossos sonhos.
A Matéria dos Sonhos (parte 2) e outras substâncias
No final, nossa capacidade de sonhar está diretamente relacionada com o mundo real. Para sonhar a de se conhecer a realidade muito bem. Não é possível sonhar com algo sem o referencial do que já existe ou existiu. Existir aqui é uma palavra dúbia: nem sempre o que não existe para você não existe no mundo como um todo. Isso me faz questionar com o que temos sonhado, ou até mesmo, com a ausência do sonho.
Ainda não consegui ler o Oráculo da Noite inteiro, apenas alguns trechos, mas assisti algumas entrevistas do Sidarta Ribeiro sobre seu livro, fiquei fascinada e com muita vontade de sonhar. Sidarta comenta que o sonho é um ensaio e um oráculo probabilístico, ou seja, no sonho somos capazes de refletir em um nível mais profundo sobre as situações que nos atravessam e sobre os caminhos possíveis para o fluir das coisas. No mundo dos sonhos, em que tudo é possível, as memórias são recombinadas e criam, portanto, novas estratégias para viver por meio do acesso ao nosso repertório de experiências, memórias etc. Ele também comenta, brilhantemente, como o sonho foi um elemento significativamente importante para a evolução da espécie humana, como os mamíferos são capazes de criar sonhos muito complexos (diferente dos répteis, por exemplo).
“O sonho está em risco de extinção”, comenta Sidarta Ribeiro em entrevista para o Uol. O cientista aponta que o sonho em uma sociedade considerada moderna e técnica como a nossa é visto como algo do mundo da fantasia, é desprestigiado e portanto não deve ser levado em consideração diante das escolhas da vida cotidiana. Por isso, não conversamos sobre nossos sonhos e ao não falar sobre, eles desaparecem. Além disso, o sono tem sido cada vez menor e com menos qualidade, devido ao ritmo de trabalho imposto pelo capitalismo, além de ser perturbado pelas preocupações, por algumas medicações e pelas telas. Segundo o cientista, acordar com pressa e rápido demais também influencia no esquecimento dos sonhos.
Trocando em miúdos, o capitalismo tem prejudicado o ato de sonhar, nos âmbitos figurativo e literal. Perturbar essa capacidade, conquistar mais esse território, galgar essa montanha é um ganho imenso para o capital e mais uma etapa da colonização da subjetividade humana.
Para os povos ameríndios, como os Yanomamis, os sonhos têm papel central na sua cosmovisão. No livro A Queda do Céu, um clássico absoluto da antropologia escrito pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Albert Bruce, Kopenawa diz que
Na cidade, nunca é possível ouvir com clareza as palavras que nos são dirigidas. As pessoas precisam ficar coladas uma na outra para poderem se ouvir. O zumbido das máquinas e dos motores atrapalha todos os outros sons; a algazarra das rádios e televisões confunde todas as outras vozes. É por causa de toda essa barulheira na qual eles se apressam durante o dia que os brancos estão sempre preocupados. Seu coração bate depressa demais, seu pensamento fica emaranhado de tonturas e seus olhos estão sempre em alerta. Acho que esse ruído contínuo impede seus pensamentos de se juntarem um ao outro. Acabam lá parados, espalhados a seus pés, e é assim que se fica bobo. Mas talvez os brancos gostem desse barulho que os acompanha desde a infância? Para os que cresceram no silêncio da floresta, ao contrário, a barulheira das cidades é dolorosa. É por isso que, quando fico lá muito tempo, minha mente fica tampada e vai se enchendo de escuridão. Fico ansioso e não consigo mais sonhar, porque meu espírito não volta à calma.
A Queda do Céu - Davi Kopenawa e Albert Bruce - pg. 342
Na página 394, Kopenawa continua:
Quando eu era jovem e ainda não era xamã, eu não sabia sonhar. Era ignorante e dormia como uma pedra jogada no chão. Era incapaz de ver as coisas da floresta durante o meu sono. Mais tarde, entendi que não devia esquecer as palavras de Omama que nos vêm do primeiro tempo. Então, pedi aos xamãs mais velhos de minha casa para me transmitirem os cantos dos xapiri, para assim poder sonhar de verdade. Antes, quando eu dormia, só via coisas muito próximas. Ainda não tinha em mim o sonho dos espíritos, que permite que a imagem dos xamãs viaje longe. Não conseguia contemplar as coisas do tempo de nossos ancestrais, nem ver o que eram de fato o trovão, o céu, a lua, o sol, a chuva, a escuridão e a luz. Eu ainda era ignorante.
O livro é enorme, e com toda certeza tem muitas outras informações sobre esse tema, mas olhando rapidamente é possível perceber como ser capaz de sonhar é importante para os Yanomamis. Acho particularmente interessante quando Kopenawa diz que a vida “moderna” ou seja, a vida urbana no capitalismo impede os sonhos e que ele precisou aprender a sonhar, que precisou descobrir como sonhar longe. O xamã também diz, em certo ponto, que os brancos “dormem muito, mas só sonham consigo mesmos” (p. 390).
Os brancos, portanto, sonham apenas com as próprias experiências, só sonham sobre si e não capazes de utilizar esse espaço como um local criativo. Aquilo que é sonhado é tão importante quanto as coisas vividas na vigília, ou seja, quando se está acordado. Os dois momentos, o sonho e a vigília, são estados complementares de estar e se relacionar com o mundo. Essas interpretações não são minhas, são da antropóloga Hanna Limulja que escreveu o livro O Desejo dos Outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami, baseada no registro dos sonhos de pessoas Yanomamis. Limulja diz ainda que nos sonhos Yanomami o sonhador se relaciona, com a própria comunidade, com os parentes mortos, com espíritos, com a floresta e não com o próprio ego, esse sim o sonho sonhado pelos brancos.
Na literatura fantástica, área que tenho estudado em alguns grupos de estudo e pretendo me aprofundar no doutorado, os sonhos são um recurso muito prolífero. Dentro da temática do fantástico, há sempre uma dúvida, uma incerteza, uma hesitação em relação ao que é real e aquilo que não é. Sendo assim, o sonho é um instrumento que causa essa sensação de debilidade: será que eu sonhei ou isso realmente aconteceu? Poderíamos escrever outra edição falando apenas sobre isso, mas além do meu prazo que está se esgotando, acho que dessa vez me empolguei e escrevi demais. Para finalizar, recomendo apenas um conto divertido e gostosinho de ler do escritor francês Théophile Gautier que aborda essa questão muito bem: O Pé da Múmia. Este conto sempre me lembra o filme Mannequin (1987), protagonizado por Kim Cattrall, a Samantha de Sex and the City, muito fofinho, com algumas piadinhas infames, mas com certeza comuns para a época. Há sempre um quê de sonho na idealização do amor romântico, não é mesmo?
Fim
Há algum tempo tenho pensado na nossa habilidade de sonhar e de imaginar uma realidade diferente como algo essencial, imprescindível para escapar do capitalismo. É fundamental pensar, desenhar e desejar, sobretudo, uma sociedade em que as pessoas não passem fome enquanto comida é jogada fora; em que não haja casas vazias enquanto pessoas moram na rua; em que as mulheres possam maternar seus filhos, quando escolherem tê-los, e não apenas cumprir uma suposta obrigação de procriar; em que a tecnologia seja utilizada para diminuir a carga de trabalho e não para precarizar os postos de serviço; em que a saúde do planeta e das pessoas não seja poluída sumariamente com fumaça e agrotóxico; em que bairros inteiros não afundem, sejam alagados ou cobertos por lama.
Esse mundo, é sim, possível. Parece mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo , mas é essencial usar nossa habilidade de sonhar, literal e ficcional, para encontrar alternativas para superar o capital. Não é à toa que todo revolucionário é chamado ora de louco, ora de sonhador; é preciso mesmo ter o terreno dos sonhos fertilizado para encontrar motivação.
P.S
Não falamos diretamente sobre pesadelo, outra dimensão do sonho, mas eu conheço alguém que com certeza tem muito a dizer sobre o tema.
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um sonho de edição!!