Por e através do evento o Texto & o Tempo, do qual eu e outros escritores de newsletter participamos, criou-se uma comunidade incrível e cheia de pessoas interessantes. Essa galera fantástica propôs um amigo secreto diferente: mantem-se o sorteio de amigos tradicional e entrega-se o presente em formato de carta, inspirada pelas edições da newsletter do amigo sorteado. Essa é a minha carta, para a minha amiga (nem tão) secreta, Carol Vidal da newsletter Devaneios Criativos.
Vamos lá.
Carol, como vai? Espero que esteja bem.
Por aqui estou legal, mas com aquela eterna sensação de que sou uma jovem adulta que conquistou poucas coisas.
Me chamo Victória, e sou sua amiga secreta. Confesso que não conhecia sua newsletter, mas li, gostei e me inscrevi. Foi um prazer poder te ler e pensar tantas coisas numa noite de segunda feira.
Na sua edição intitulada Como classificar uma experiência você comenta sobre a metamorfose ambulante, do Raul Seixas e falou sobre a compulsão das pessoas em sempre dar uma opinião sobre tudo. Isso me lembrou outra canção do Raulzito que diz “Mas é que se agora para fazer sucesso, para vender disco de protesto, todo mundo tem que reclamar”. E eu não poderia concordar mais com você quando diz que não precisamos emitir uma opinião sobre tudo. Tenho pensado muito nisso ultimamente, e no valor do silêncio. Eu sou uma pessoa que fala demais, que gesticula, que grita, que gargalha alto e não digo isso como um problema, não acho que seja, mas tenho tentado observar um pouco mais, a guardar certas ponderações para mim. Isso me faz pensar que será a vaidade, a ignorância ou o fanatismo que nos faz sempre querer dizer algo sobre alguma coisa, entender os mistérios do universo e da alma? Eu não sei. E nem quero saber. Tem certas coisas que não tem e não precisa de respostas. Sabe aquelas indagações do tipo: porque ele me traiu, me abandonou, brincou com meus sentimentos? Não sei, e não me importa saber, simplesmente não tem explicação.
E depois disso, saltei para outra edição, a Pegou essa referência? e pensei inúmeras coisas, talvez desconexas, sobre As Horas, o filme que você citou. Lembro que mamãe, professora de portugues e literatura, uma vez alugou As Horas em VHS. Eu era bem criança, achei um porre de chato e só lembro da cena do suicídio da Virginia. Não sei se de fato o filme é chato, nem ao menos sei a história, mas estou bem curiosa para ler a Virginia nos últimos tempos, porque uma amiga me recomendou.
Isso me fez pensar em como adoro viver para morder a língua, para cuspir para cima e sentir a meleca caindo na minha testa. Assistir As Horas enquanto uma criança talvez não tenha sido uma boa ideia, eu não tinha repertório, talvez o momento seja agora e pode ser que role uma mudança de perspectiva. Adoro revisitar coisas, no geral, músicas, filmes, lugares, etc, e perceber como a vida é cheia de possibilidades.
Vou te contar uma das experiências mais significativas que eu tive nesse sentido.
A primeira vez que eu fiz uma grande viagem, fora da pequena cidade onde eu nasci, foi quando ganhei um prêmio na Olimpíada de Língua Portuguesa. Fomos eu, minha mãe, minha professora de português da época e o diretor da escola onde eu estudava, com tudo pago, para São Paulo. Dos lugares que visitamos, o Edifício Martinelli e a Casa das Rosas foram os que mais gostei enquanto uma criança do interior, deslumbrada com a cidade grande. O meu êxtase com aquela viagem, aquela cidade, aquelas construções antigas era catártico e tudo parecia perfeito. Cerca de 10 anos depois, voltei a São Paulo, dessa vez adulta, no meio da minha graduação em Ciências Sociais, eram outros tempos. Coloquei na minha listinha que gostaria de retornar a esses lugares, o Martinelli e a Casa das Rosas e no mesmo dia, visitei os dois, um após o outro. Foi lindo não apenas pelas construções antigas e pelo ar de assombro que eu sinto sempre que entro em locais com arquiteturas tão particulares, mas pela emoção que me causou. Em ambos os locais, os guias turísticos comunicaram a existência de quartos ou andares para empregadas domésticas. O próprio edifício em que eu estava hospedada, no apartamento de uma amiga em Higienópolis, tinha um cubículo apertado e mofado que outrora fora destinado a trabalhadora doméstica. Lembro de me sentar em um banco na Casa da Rosas, já com a noite caída, o vento gelado balançando meus cabelos que na época estavam grandes e tingidos de vermelho, e chorar copiosamente. Chorei pela minha avó, já falecida, que foi arrancada de sua casa na fazenda, em processo compulsório de migração para cidade e, nela chegando, teve que trabalhar como empregada doméstica pois era tudo que sabia fazer. Chorei pela minha mãe, que ao engravidar na adolescência, precisou parar de estudar alguns anos para cuidar de mim e restou, durante um tempo, seguir os passos da minha pobre avó. Chorei pelas humilhações, pelas dificuldades, pelos grossos pingos de chuva que caiam sobre elas ao sair ou entrar do serviço, ou pelas gotas de suor que escorriam por suas testas, nos dias quentes de dezembro enquanto faziam o trajeto entre as casas da patroa e a sua própria. Chorei pelas inúmeras empregadas que moraram nos cômodos bolorentos das luxuosas e espetaculares construções de São Paulo, que eram tratadas “como se fossem da família” no passado e nos dias de hoje. Quando assisti Que Horas Ela Volta?, passei a madrugada chorando; lendo Conceição Evaristo chorei de novo; e quando escutei o podcast da Mulher da Casa Abandonada também. Só quem viveu a disparidade, a desigualdade financeira e a assimetria das classes no Brasil pode entender porque isso é tão triste e significante para mim. Costumo dizer a uma amiga minha que eu gosto de chorar, que às vezes é tudo que eu preciso. E é verdade. Acho que cada um tem seu processo, mas chorar para mim é o início, o meio e o fim, sendo que cada pranto tem uma intensidade, uma quantidade de metros cúbicos de água escorrendo, uma textura dos grânulos de sal diferente.
Como diria Gal Costa “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. E foi por aprender a desfrutar da minha tristeza e dos meus demônios, que tento valorizar os pequenos momentos felizes da vida. No final, tudo é muito clichê, as coisas sempre se repetem, todo mundo diz a mesma coisa, mas a vida é assim, um eterno retorno.
Bom, prometo que então, em 2023, darei uma nova chance As Horas e lerei Virginia Woolf. Quem sabe essa não seja a nova catarse que me aguarda, não é mesmo?
Enfim, queria deixar uma playlist, mas não sei que tipo de música você gosta, nem de livro, nem de filme, desculpe. Entretanto, enquanto escrevia sua carta, me lembrei que hoje, enquanto eu caminhava na beira da estrada, vi umas ovelhas e me recordei de uma notícia curiosa sobre elas que puxou na minha memória outras situações curiosas com animais.
Por isso, vou deixar os links desses fatos interessantes para você:
Vídeo: ovelhas andam em círculos durante doze dias seguidos
'Exército de sapos' criado por tiktoker em lagoa invade quintais e preocupa vizinhos
Foi um prazer te conhecer.
É isso por hoje, tchau
Essa notícia dos sapos me chocou demais na época! Adorei sua carta e tô curiosa ela saber que te tirou 💌
que lindeza essa carta - presente! :)