E vamos de musiquinhas do mês de julho.
Nos idos anos de 2008, ou 2009, o primeiro computador com internet chegou na casa da minha avó. Para mim aquela era a maior e mais incrível revolução tecnológica existente porque era possível baixar filmes e músicas pelo saudoso Ares. A primeira e única vez que eu assisti Laranja Mecânica (1971) foi por conta desse aplicativo, assim como a produção australiana Jovem Einstein (1988). Ao contrário do impactante filme do Kubrick, eu não lembro do que se tratava a história do Jovem Einstein e vagamente recordo de alguma cena, mas tem uma coisa que eu nunca esqueci: a trilha sonora. Na época, pesquisei no Youtube e encontrei: Great Southern Land, da banda-alguma-coisa-que–não-dei-muita-importância. Ouvi essa música enlouquecidamente. Até que um dia eu descobri outras canções e ela ficou adormecida na minha memória, jamais esquecida, só tirando umas férias.
No ano passado, na kitnet que morei em Dourados com meus gatos e minhas plantas, o Youtube ou o Spotify recomendaram para a fã de new wave que vos fala, uma música intitulada No Promises, de uma tal de Icehouse. Amor à primeira vista. Sério. Uma coisa levou a outra e pouco tempo depois eu estava ouvindo Measure for Measure (1986), o álbum em que a No Promises foi lançada. No exato momento que eu dei play senti o impacto e a dor da flecha, disparada pelo Cupido, atravessando meu peito. Quando me dei conta que Great Southtern Land também é do Icehouse, tudo fez ainda mais sentido: nossa conexão era de outras vidas, caso do acaso bem marcado em cartas de tarô.
A Icehouse é uma banda australiana formada por Iva Davies, seu idealizador e único membro permanente. Entre 1977 a 1981, a banda se chamava Flowers, mas mudou o nome para Icehouse inspirada no apartamento gelado que Davies morou no início dos anos 80. Antes de fazer sucesso nos Estados Unidos, a banda já contava com certa reputação em seu país natal e na Europa, e foi uma das precursoras na introdução de equipamentos eletrônicos como sintetizadores e baterias na música pop produzida na Austrália. Na terra do Tio Sam, a banda foi apresentada ao público pela nostálgica MTV através do clipe da música Hey Little Girl, do álbum Primitive Man (1982) - que aliás é o mesmo de Great Southern Land.
A reputação construída com esse álbum foi fundamental para que o próximo trabalho, Man of Colours (1987), fosse um sucesso instantâneo colocando Eletric Blue como um hit na Billboard Hot 100 nos EUA e em 1º lugar nas paradas da Austrália. Crazy, outro grande sucesso do Man of Colours tem um clipe envolvente e datado - isso não é uma crítica, juro: o locutor de uma rádio, interpretado pelo Iva Davies, informa que está prestes a ir para casa já que o sol está nascendo e ele passou toda madrugada tocando músicas, mas antes disso, vai atender um último pedido. “Se eu estiver sonhando, por favor não me acorde” ele diz e atende o telefone. Do outro lado da linha, uma mulher com a voz sensual pergunta “Você se importa se eu te acordar?” e pede para que ele toque Crazy.
O Measure for Measure, é o meu favorito da banda e responsável pela minha (re)descoberta da Icehouse. O título é baseado na obra homônima de Shakespeare e nos pitacos dos produtores David Lord e Rhett Davies em menção às melodias frias e dramáticas das músicas em contraste com outras alegres e empolgantes. Esse era o terceiro álbum da Icehouse e um dos primeiros da história a ser gravado e lançado inteiro em formato digital, ou seja, em CD. Bom, você deve imaginar que no auge dos anos 80 o disco de vinil era uma mídia bem mais popular do que o CD, mas considerando a rápida evolução nas formas de gravar, armazenar e reproduzir áudio não é preciso se esforçar muito para entender a importância desse momento na indústria musical.
O LP (long play), ou popularmente conhecido como vinil, é uma mídia analógica, ou seja, o que é reproduzido nele é exatamente igual ao que foi captado. No disco de vinil é impressa, usando como base uma matriz, as variações de frequência da onda sonora que serão lidos por uma agulha e reproduzidos em formato de som. A expressão mídia/som analógico significa que escutamos o som tal qual ele foi gravado, sem nenhuma diferença ou perda. O CD (compact disc), por sua vez, é uma mídia digital em que um laser óptico queima um código binário de pontos e traços em sua superfície que ao ser lido por um equipamento apropriado é decodificado e reproduz a música. O som digital, ao contrário do vinil, não é análogo ao que é gravado pois algumas perdas acontecem nesse processo, muito embora a maioria delas sejam imperceptíveis ao ouvido humano ou podem ser corrigidas em estúdio.
Trocando em miúdos, a maneira como cada mídia é gravada influência diretamente no seu consumo. Embora o vinil seja charmoso e garanta uma experiência mais íntima com a música, ele é mais caro, exige um espaço maior de armazenagem física, tem uma capacidade de espaço para gravação de música inferior e é perecível. Uma partícula de poeira dentro das nervuras que a agulha percorre pode causar interferência na música reproduzida. Para mim, é justamente essa a beleza de toda situação. É importante preservar as memórias, o passado não é algo deslocado do presente, pelo contrário, ele molda a atualidade, mas nem tudo que um dia aconteceu será relembrado, algumas coisas são perdidas no processo. É ainda bem. Tão bonito quanto nossa capacidade de recordar é nossa capacidade de esquecer.
O CD é de certa forma o oposto do vinil, inclusive em questão de durabilidade e capacidade de armazenagem. As primeiras mídias digitais de música gravadas abriram espaço para plataformas como o Spotify que, apesar da hegemonia e de diversas outras críticas que poderíamos tecer, é importante para garantir um acesso dinâmico e mais barato a um vasto conteúdo musical.
Desde que o mundo é mundo as civilizações buscam formas de registrar sua cultura. A evolução das mídias de música faz parte desse processo. Não importa se esse processo perdeu a essência ou se todas as ações na indústria musical são pensadas em termos mercadológicos. O fato de que tudo isso é um sintoma dos nossos tempos e um registro dos nossos valores. A Icehouse como uma das primeiras bandas a gravar e lançar uma mídia digital faz parte dessa história. O mullet do Davies, a transição digital, os equipamentos eletrônicos, a MTV, a extravagância e a irreverência dos anos 80 um dia será esquecida. Como tudo. Os registros podem se perder física ou simbolicamente. A nossa capacidade avançada de registrar fatos e dados talvez tenha esticado nossa percepção sobre o tempo, mas nada jamais será capaz de torná-lo infinito. Estrelas morrem no silêncio.
É isso por hoje, tchau.