Antes tarde do que mais tarde ainda, não é mesmo?
Queria muitooo ter falado sobre a Cher, sobre Icehouse e sobre o Whitesnake nesse último mês, mas a terrível missão de sobreviver no mundo capitalista não me permitiu. Por isso, julguei justo falar sobre a única banda, dentre as citadas, capaz de entender o sentimento devastador de tristeza e desesperança que tem coberto meus dias: a Legião Urbana.
Mamãe sempre tem uma música ou um poema para todos os assuntos. Fico impressionada com a sua capacidade de decorar e recitar versos e admiro sua paixão musical que escutava no rádio e lia em revistinhas de cifra os versos que embalaram sua vida. Como a fruta não cai longe do pé, meu gosto musical foi totalmente influenciado por ela, principalmente no que diz respeito aos artistas nacionais - ela não gosta muito dos gringos pois não pode entender o que eles falam.
A Legião Urbana é uma das bandas que ela me ensinou a escutar. Não sei dizer quando ouvi a primeira música deles, mas sei que aos 10 anos eu já cantava mais da metade da discografia e ficava na bad ouvindo a voz grave do Renato cantar "e Clarisse está trancada no banheiro, e faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete". É, suponho que essa letra não seja muito amiga das crianças, mas eu andei pulando etapas durante minha vida.
Nas minhas mais atuais rodinhas de amigos, sempre tem um hetero que puxa um violão e toca Faroeste Caboclo. Os patifes foram responsáveis por determinar a alcunha de que a Legião é chato perante os jovens. Também pudera, ninguém aguenta mais essa música e Renato deve se revirar no túmulo ao ver tudo que cantou resumido a isso. Não sei se internalizei isso ou se simplesmente esqueci da Legião, mas fiquei um bom tempo sem ouvir. Alguns dias atrás, abri o Spotify, coloquei As Quatro Estações (1989) e de repente, percebi de onde vinha a minha sensação de conhecer The Sisters of Mercy e companhia de outras vidas: a Legião é uma banda de post punk, ou como gostam de dizer os adeptos, uma banda de gótico. Lembrei que já escutei alguém dizer que Renato era grande fã de Joy Division e imitava os trejeitos de Ian Curtis no palco. Bom, aqui tudo começa a fazer ainda mais sentido. Isso é algo que acho legal sobre a vida: a capacidade de se surpreender com coisas que você julgava conhecer tão bem.
Se você pesquisar o que é a música gótica vai encontrar a criança definida como post-punk. Na minha interpretação pessoal, acho que faz bastante sentido. Enquanto o punk era um movimento de revolta contra o sistema e portanto tinha um caráter mais comunitário, o que veio a seguir era algo melancólico, introvertido e bastante influenciado pelas levadas pesadas de contrabaixos, teclados e sintetizadores. Não que o post punk não pudesse ter um caráter de rebeldia coletiva e foda-se o governo afinal de contas a fruta não cai longe do pé, mas acho que agora outros assuntos mais íntimos também tinham lugar. Sempre alguém dirá que toda e qualquer banda de rock que canta letras depressivas é gótica, definição essa que tanto faz, ao mesmo tempo que não. É sempre difícil colocar qualquer expressão artística dentro de uma caixinha, mas por outro lado é interessante delimitar espaços a fim de se entender as ideias que influenciaram uma época.
Eu amo quando a Legião canta que as estações mudaram, mas nada mudou (Por Enquanto, 1985).Tenho tido muito essa sensação desde que me tornei adulta. Tudo indica que a letra fala sobre um relacionamento, mas quando penso nela, não penso nos meus amores do passado, penso na tristeza que é viver sufocada pelo trabalho que só cobra e exige e não te dá nada em troca, no horror que é estudar alimentação no mestrado e ver os índices de pessoas passando fome cada vez maiores, na terrível realidade de não ter perspectiva ou esperança de que as coisas vão mudar, na sensação desoladora que é tentar se sentir melhor, mas simplesmente não conseguir. Talvez a geração do Renato no Brasil que recém saia da ditadura civil-militar, ou os demais góticos na música espalhados por aí também se sentissem assim, até porque, os nossos problemas pessoais não são assim tão pessoais no final das contas. As tristezas, as desilusões, os percalços da vida são coletivos. A fome, a miséria, a falta de perspectiva, não ter onde morar, não ter tempo para ler um livro, rir atoa com os amigos, afagar um gatinho ou aproveitar a infância dos filhos não é uma mera coincidência que atravessa a vida de todos aqueles que não tiveram a sorte de nascer herdeiros. A pobreza econômica ocasiona a miséria intelectual e da qualidade de vida. Ninguém pode ser feliz em um país tomado por políticas neoliberais e pelo capitalismo nos sufocando cada dia mais. Saber que a vida pode ser muito mais me destrói; queria acreditar que a vida é ruim mesmo porque assim quis o bom deus e que o ruim está bom. Mas a cada dia que passa, sinto que as estações sempre mudam, mas tudo continua igual.
Por fim, quero dizer que não me dediquei muito a pesquisar coisas sobre a banda ou sobre os discos, como faço normalmente e amo fazer. Nesse último mês estive muito cansada e decidi que só jogaria reflexões perdidas em uma newsletter atrasada. Só queria falar sobre como me sinto ouvindo essa banda e o porquê dela ser especial na minha trajetória, ainda que com letras tão difíceis de digerir em sua maioria. Ainda quero pegar a discografia da Legião desde o início e escutar com bastante carinho, mas esse projeto vai ficar para daqui alguns dias.
Já não sei dizer se ainda sei sentir
O meu coração já não me pertence
Já não quer mais me obedecer
Parece agora estar tão cansado quanto eu
Até pensei que era mais por não saber
Que ainda sou capaz de acreditar
Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem
Às vezes faço planos
Às vezes quero ir
Pra algum país distante
Voltar a ser feliz
Já não sei dizer o que aconteceu
Se tudo que sonhei foi mesmo um
Sonho meu
Se meu desejo então já se realizou
O que fazer depois
Pra onde é que eu vou?
Formação original da Legião Urbana, da esquerda para a direita: Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá, Renato Russo (atrás) e Renato Rocha.
Formação após 1989, da esquerda para direita: Marcelo Bonfá, Renato Russo e Dado Villa-Lobos.
É isso por hoje, tchau.