Essa edição especial faz parte do amigo secreto organizado pela
. O sorteio dos participantes acontece normalmente, mas o presente é uma cartinha entre escritores. Como não sei fazer suspense, revelo logo de cara que minha amiga secreta é a , escritora que amo DEMAIS ler.Essa carta é uma resposta a edição Viver é também descansar - 26ª Edição - Como entendi que, para viver mais, era preciso viver menos.
Vamos lá!
Querida Mila,
enquanto lia a edição 26ª, coloquei um vinil do Fagner, lançado em 1985, em que ele divide os vocais com Belchior e Chico Buarque. Foi uma feliz surpresa ler e ouvir simultaneamente dois materiais distintos, mas que falam comigo sobre um tema que tem permeado meus pensamentos: o tempo.
Explico aos poucos, mas explico.
Tenho pensado no tempo e na velocidade como uma maldição da minha geração, mas sobretudo dos que vieram depois de mim. Me recordo das videolocadoras pulando do VHS para o DVD, das lan houses e do disquete, do CD e da fita K7, mas me lembro especialmente do seu sumiço, fase que vivenciei ativamente. O fechamento das locadoras de filmes da minha cidade me marcou bastante. Sinto falta de gastar tempo procurando os filmes nas prateleiras, de implorar para atendente me avisar quando retornasse do empréstimo um título que eu queria muito ver e de ter que devolver o VHS/DVD no prazo para não levar multa.
O filme que eu mais assisti no VHS foi Titanic e até hoje é meu favorito. Recentemente ele foi relançado no cinema e confesso para você que assisti-lo na telona foi uma experiência inesquecível não apenas pela emoção de revisitar uma memória de infância, mas porque o tempo passou diferente. Foram 3 horas em hipnose, nada podia me tocar ou tirar minha concentração - apesar dos adolescentes na sessão que a essa altura da minha vida já são uma ameaça perigosíssima. Era como se minha cabeça tivesse sido completamente esvaziada, nenhum outro pensamento a cruzava. Esqueci até meu nome naquele momento. Às vezes rola isso, sabe, quando estou vendo filmes e me pego tão concentrada que quando saio do transe levo um pequeno susto. Mas não é sempre. Eventualmente não consigo largar o celular e deixo uma série que já vi mil vezes rolando ao fundo enquanto percorro os infinitos caminhos do ex-twitter.
Sinto que os meus amigos, especialmente os da minha idade, não conseguem entender o tempo - não que eu entenda, mas em minha defesa eu tento. Assistir um filme antigo é sempre muito maçante para eles porque os efeitos especiais são ruins ou o ritmo é arrastado. Será que o empecilho é o filme ou o problema é nosso? Sinto que não conseguimos compreender outros tempos porque o nosso tempo não nos dá tempo. Desculpa a repetição de palavras, mas não há outra melhor e a recorrência é sempre um bom mecanismo de aprendizagem.
Citei os discos lá no começo porque eles tem me ajudado a entender melhor o tempo. Aliás, deixa eu te contar essa história brevemente: como sempre fui muito ligada a música, ter um toca discos era um desejo antigo. Um dia resolvi comprar uns discos, um do a-ha e outro do Whitesnake, duas das minhas bandas favoritas, mesmo sem ter onde tocá-los. Nesse ínterim, entre a compra e a entrega dos Correios, fui à Feira da Lua e vi um aparelho desses 3 em 1: disco, fita e rádio, em uma das barraquinhas. Perguntei se queriam me vender e diante do sim, comprei. Quando os discos chegaram, coloquei para tocar, mas a agulha estava estragada. Rodei a cidade de eletrônica em eletrônica, mas não encontrei nenhuma para comprar. Pedi pela internet. Enquanto aguardava, vi diversos vídeos explicando como instalar a agulha em modelo X e Y de toca discos, quais os formatos existentes e como isso influencia na sua capacidade de ler a música, do que elas são feitas - as melhores são fabricadas de diamantes - e etc e etc. Uma loucura. O funcionamento do vinil é a maior bruxaria de todos os tempos. A agulha não foi entregue por erro da transportadora, o vendedor estornou o dinheiro e tive que comprar outra. A nova chegou um dia antes de uma viagem importante que eu iria fazer e nem deu tempo de curtir, ficou para depois.
Quando voltei, finalmente, tive tempo de ouvir meus discos tão desejados. Para colocar o vinil no toca discos, posicionar a agulha com leveza e cuidado para não causar nenhuma perturbação ou ranhuras, para retirar o encarte da embalagem e acompanhar as letras e de quando em quando virar o disco a gente precisa de tempo. É um ritual e um ritual não se faz de qualquer jeito, sem cadência. Desde que entrei para seita dos amantes de vinil, minha relação com a música mudou, assim como minha relação com o tempo. Sinto que é um certo privilégio ter aquela obra nas minhas mãos, como se aquelas músicas fossem minhas e ninguém, nem o Spotify, pudesse tira-las de mim (talvez só um interesse amoroso que quebrasse, como cantou Raul “minha vitrola e minha coleção de Pink Floyd”).
Aliás, parece que todas as mídias são de grandes corporações. Os filmes são da Netflix, os livros da Amazon, as músicas do Spotify, do Deezer do Youtube. Se quem controla as plataformas tirar seu artista preferido do ar não tem mais como escutá-lo. Nesse sentido acho que a pirataria é uma espécie de resistência, assim como colecionar mídia física. Ninguém nunca vai me tirar os discos do a-ha, mesmo se a banda encerrar o contrato com essas empresas.
Como se precisássemos estar de olho no que vem mais à frente, que a vida sem sacrifícios, lutas e competições é uma vida vazia, abaixo do rendimento. Com isso, nos transformamos em pessoas exauridas, que depois precisam negociar mil soluções para um descanso. Quando somos empurrados por caminhos que nem queríamos estar trilhando, nos distanciamos da construção do lugar que poderíamos entender enquanto lar, se ficássemos parados tempo suficiente para saber onde nos cabe. Viver é também descansar - 26ª Edição.
Comentei da feira lá em cima, né. Tenho certeza que nesse lugar o tempo passa diferente. Os pequenos agricultores cultivam alimentos que crescem no seu devido tempo; produzem de acordo com as culturas da época; criam galinhas ciscando no chão e esperam o queijo dessorar pela ação da gravidade. É um tempo diferente que a gente não conhece. Diferente dos hipermercados, onde tudo é descascado, cortado, pronto para consumo, congelado direto para o micro-ondas; aqui o tempo passa muito rápido.
Comecei a ler O Morro dos Ventos Uivantes esse ano como uma meta pessoal. As meninas da
são loucas por esse livro e eu nunca entendi porque, já que tentei lê-lo uma vez quando criança - a Bella cita ele em Crepúsculo -, mas achei um porre. Apesar disso, encarei essa tarefa de peito aberto e o primeiro capítulo, agora aos 27 anos e não mais aos 12, foi o suficiente para arrebatar meu coração. A grande questão aqui é o tempo. Quando me deito e abro o livro, quer dizer, ligo o Kindle, e acompanho as aventuras de adolescentes andando entre Wuthering Heights e Trushcross Grange á cavalo ou a pé, envenenados da loucura da paixão, sinto que o relógio caminha com mais gentileza. A história é narrada pela empregada Nelly Dean, que acompanha toda a história de Catherine e Heathcliff, e cita, em certo momento, que já tem 45 anos e sua mãe morreu com 80 anos. Em 1847, data de lançamento da obra, chegar aos 45 anos era raro e aos 80 então, nem se fala. Aos 45 anos as pessoas já tinham vivido tudo que a vida oferecia, será que tinha algo ainda aos 80?Tudo passa muito devagar nesse romance ou eu que me acostumei a correr. Hoje vivemos mais, porém o tempo é diluído. Não temos horário para cozinhar a própria comida nem para esperar os alimentos e os animais crescerem; não temos tempo para brincar com as crianças; para esperar o doce apurar ou a paella criar o socarrat; para contemplar o ócio; para observar como a gata mia diferente quando ela chama os filhotes de quando está com fome. Para onde foi as horas que economizamos na fila da lotérica? Eu sei, mas até me canso de constatar que o capitalismo é sempre o culpado de tudo; que é o grande senhor do tempo. Quando me refiro ao sistema econômico e produtivo é mais do que o senso comum pensa, é mais do que comprar e vender. É produzir sem porquê nem para que, é competir o tempo todo, viver em alerta à espera da próxima curtida, é reduzir as pessoas e a complexidade de suas vidas em mão de obra assalariada. É destruir Maceió e Brumadinho, cidades e sujeitos que demoraram tanto para ser quem são e jamais serão novamente, é envenenar o solo para cultivar um mar de soja e milho transgênico, é expulsar os povos indígenas, quilombolas e camponeses de suas terras violentamente para passar fome na cidade.
Ao confundir viver com lutar, arriscamos nos sentir deslocados quando a vida parece bem mais terna e palatável. Como se repousar fosse inadequado, e não essencial para nos manter vivos e não apenas sobrevivendo, esperando a próxima batalha. Viver é também descansar - 26ª Edição
Emily Brontë lançou O Morro dos Ventos Uivantes um ano antes de sua morte aos 30 anos, sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, já que o ofício de escritora não era destinado às mulheres. Aparentemente, apesar dos quase dois séculos que nos separam da espetacular Emilly, pouca coisa mudou já que tem muito homem incomodado com a lista de escritoras mulheres da FUVEST.
Espero que toda essa minha divagação, que requer tempo, não tenha ficado desconexa. O lance é que o seu subtítulo “Como entendi que, para viver mais, era preciso viver menos”, me fez, finalmente, colocar esse pensamentos para fora. Todo dia sinto que preciso viver menos no sentido de ter menos pressa, de tirar o pé do acelerador, de respirar fundo e tomar um café sem mexer no celular. Quem diria que esse seria o grande desafio de uma mulher ordinária como eu: fazer uma refeição sem assistir um vídeo de react no Youtube.
Ao tentar deixar a minha vida menos cheia de enfeites, projetos e atividades, sinto que reservei um terreno vazio no qual pude plantar muita coisa. No lugar de capinar sol a sol para que vizinhos passassem e me vissem trabalhando, preferi me concentrar em entender quais seriam as sementes certas para meu solo, meu clima, minha estação e, assim, ter o que fosse necessário para semear, quando chegasse a hora. Viver é também descansar - 26ª Edição
Seus textos me causam essa sensação gostosa de parar o relógio, Mila. Sinto que seus escritos são feitos com calma, que as palavras são encaixadas naturalmente como só alguém com muita intimidade com a Língua Portuguesa poderia fazer. Tarefa, aliás, que exige tempo. Acho que para quem gosta de ler e escrever os minutos são contados de outra maneira, a química do cérebro deve operar um pouco diferente. Seus temas e suas metáforas, sua maneira poética de entender e explicar o mundo me transportam para um lugar em que não preciso ter pressa.
Até mais, e que o tempo seja nosso!
A Mila foi minha amiga secreta e eu fui a amiga secreta da
, da newsletter , que me escreveu uma carta maravilhosa, deliciosa e super atenciosa em resposta à minha edição sobre o Wild Seed. O presente veio não apenas pelas palavras da Luisa, mas também com seu tempo de leitura, já que ela leu muito dos meus textos, e de escrita. Muito obrigada! Eu amei de verdade!Aproveito para responder um questionamento da Luisa na carta que ela me enviou sobre o porque do selo do Raul Seixas ser tão mais caro que o do Cazuza:
Não consegui descobrir, já digo logo de cara, mas encontrei vários deles à venda no Mercado Livre. Quando o Rock in Rio de 1991 aconteceu, ambos já tinham partido: Raul em 1989 e Cazuza em 1990, então os selos eram uma espécie de homenagem. O que eu sei é que, na primeira edição do Rock in Rio em 1985, quando Cazuza ainda era da Barão Vermelho, o cantor comemorou a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, o primeiro Presidente da República do Brasil após 21 anos de ditadura militar. Sei também que em 85, o Raul já estava com a saúde bastante debilitada e frequentemente aparecia bêbado nas apresentações e não conseguia desenvolver os shows. Por isso, rolou uma espécie de boicote para que ele não fosse convidado para o Rock In Rio daquele ano. Não sei como essas informações poderiam ajudar, mas foi a única conexão que encontrei entre uma coisa e outra.
É isso por hoje, tchau.
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Como escritora de literatura fui convidada, pela primeira vez, para falar sobre o meu conto A Manha publicado na Revista Contos de Samsara e é claro que estou RADIANTE. Se quiser ouvir, só acessar o link abaixo. O projeto é tocado pelo Filipo Brazilliano que coordena o Clube de Leitura Ordem da Traça dedicado a ler contos publicados em revistas digitais.
Linda demais essa edição e todas as reflexões! Amei!
que carta mais linda tu escreveu pra Mila 💜
essa conversa sobre tempo bateu muito bem por aqui. adorei saber da sua saga com a vitrola para conseguir a agulha certa e finalmente poder curtir seus vinis! por aqui eu tenho uma vontade futura de ter discos e etc para ter sempre um repertório do que escutar. as possibilidades do Spotify são tantas que me perco. e eu adoro notar certas diferenças geracionais que uns poucos anos a mais podem causar. eu vi Titanic no cinema (na exibição original) e li O morro dos ventos uivantes antes dos livros de Crepúsculo serem lançados. inclusive só li O morro dos ventos uivantes tão cedo porque tinha uma amiga que era filha de um dono de sebo e ela fez esse garimpo pra mim. Imagina que sonho ter um sebo na família!!!1
agora sobre os selos, não sabia que os dois cantores já tinham morrido no rock in rio de 91. quando notei a diferença no preço a minha primeira intuição foi: será que naquela época o apreço ao Raul Seixas era infinitamente maior que ao Cazuza? não tenho uma opinião especializada™️ pra falar de legado, mas os dois parecem ter sido relevantes pra música brasileira. (vai que alguém nos anos 90 precificou os selos no modo aleatório e trinta anos depois estou me preocupando com isso rs)