A digitalização é o ápice da conveniência, mas o vinil é o ápice da experiência - Jay Miller
Sempre gostei de olhar para o passado e tirar dele minhas referências. É claro que isso é absolutamente normal afinal de contas, o que é o presente além de um amontoado de coisas feitas anteriormente? Todos os filmes, músicas ou meus livros favoritos tinham décadas e décadas de idade e nada da atualidade me interessava, não sei explicar ao certo, mas sempre senti certa conexão e emoção com o antigo, como se eu tivesse uma memória afetiva com algo que não vivenciei. Esse sentimento era meio desequilibrado e fazia com que eu me sentisse deslocada do agora e das pessoas. Levou um tempo até que eu compreendesse que era possível ser feliz nos dois mundos, no passado e no presente, e que as minhas referências era uma das coisas que fazia as pessoas gostarem de mim, e não o contrário.
E foi por sentir saudade de coisas que eu nunca experienciei que engatei um papo com um cara, anos atrás, enquanto comia um pastel de procedência duvidosa em um bar de esquina. A amizade se desenrolou, um breve affair em seguida… Foi no quarto amontoado dele que escutei um vinil pela primeira vez, se não me falha a memória, era um do começo da carreira do Titãs. Meu interesse pelo boy se dissipou rapidamente, mas em contrapartida o amor pelo chiadinho do som do vinil se fortaleceu.
Como amores sem uma pitada de desalento não tem graça, somente anos depois desse dia pude adquirir meu próprio tocador de discos. Ensaiei bastante procurando modelos na internet, pesquisando sobre preços e custo benefício, salvando nos favoritos os discos que queria comprar… Até que um dia vi a seguinte frase, em um sebo online: a coleção de vinil não começa pela vitrola e sim pelos discos.
Seguindo o conselho, comprei meus primeiros dois vinis e como não poderia ser diferente, escolhi os das minhas bandas favoritas: A-ha On Tour in Brazil (1989) e Come An’ Get It (1981) do Whitesnake.
Naquela mesma semana, fui à Feira da Lua e entre abóboras e quiabos havia um aparelho de som 3 em 1: rádio, fita K7 e toca disco. A feirante disse que não sabia o que fazer com o aparelho, que tinha ganhado de uma colega; mais do que depressa, perguntei se ela não queria me vender e a resposta foi: vou ver e te falo. Após alguns dias de agonia e noites insones, ela decidiu vender, mas, foi preciso trocar a agulha do aparelho e lá se foram mais cerca de 20 dias de espera até que a encomenda chegasse.
Nesse meio tempo, pesquisei como o vinil funciona e descobri coisas interessantes. O som é um fenômeno físico que se comporta como uma onda, portanto, possui comprimentos e frequências variadas, assim, conforme a onda vibra um “desenho” é formado. Esse “desenho” que corresponde as vibrações da onda sonora é a identidade analógica da música e é exatamente isso que é impresso no vinil.
O som que será gravado, ou seja, o “desenho” que lhe corresponde é cortado por uma agulha em um disco matriz que posteriormente será replicado originando várias cópias e o disco finalizado.
O disco em que a matriz será gravada passa por uma série de processos e banhos químicos até uma das suas ultimas etapas, a prensagem. Nesse estágio, uma bola de vinil, que na verdade é o nome do polímero que reveste o disco, é prensado contra o disco-cópia e a matriz, imprimindo as músicas.
O vinil, enquanto mídia analógica, reproduz o som exatamente como ele foi gravado, enquanto que mídias digitais, como o CD ou as plataformas de streaming, não. Isso acontece porque as gravações digitais transformam o som em um código binário, gerando uma perda sonora que embora seja imperceptível e passível de correção em estúdio, é o suficiente para desqualificá-lo enquanto análogo.
Em termos práticos, essa diferenciação causa alguns impactos. O vinil é uma mídia que possui menor espaço de armazenagem, se deteriora com o tempo e pode sofrer interferências externas: um floco de poeira nas ranhuras do disco é capaz de prejudicar a leitura da agulha, por exemplo. O CD e demais mídias digitais de streaming não sofrem com nenhum desses problemas: sua durabilidade e espaço de armazenamento é infinitamente maior, e a qualidade da reprodução não se altera ou deteriora devido a fatores externos. Entre o vinil e o CD, até o espaço para guardá-los na sua estante é drasticamente reduzido e esse aspecto em relação ao streaming dispensa comentários. A diferença nos preços também é expressiva: com cerca de R$20 mensais você paga o Spotify para ouvir centenas de artistas enquanto que, com esse valor dificilmente se compra um vinil ou um CD.
Por esses motivos, acreditava-se que o vinil ia desaparecer gradualmente do mercado, especialmente considerando a queda nas vendas em meados dos anos 80, período que coincide com a ascensão do CD. Entretanto, de alguns anos para cá, exatamente na era dos streamings, o vinil reencontrou seu espaço nos corações dos consumidores e no comércio. Para entender esse movimento, o jornalista David Sax pesquisou e escreveu o interessante e divertido livro A Vingança do Analógico: Por que os objetos de verdade ainda são importantes (Rocco, 2017).
Sax argumenta que a produção e venda de vinis expandiu consideravelmente nos últimos anos - por incrível que pareça - graças ao advento da música digital em formato de streaming. As gravadoras precisam vender muitos singles para compensar a produção de um álbum porque a internet consegue reproduzir e piratear esse conteúdo com muita facilidade. No caso do vinil, isso não acontece, além de que o seu preço mais elevado contribui para equilibrar essa balança. Assim, o comércio de vinis não se concentra apenas em discos lançados quando o digital ainda não existia, mas também na produção de artistas da atualidade como Taylor Swift e Lana del Rey, por exemplo. O apelo ao público refere-se exatamente ao que o streaming não pode oferecer: a experiência de ter a música em suas mãos. Nesse desenrolar, quem se tornou obsoleto foi o CD, já que em comparação ao Spotify, ele não oferece nenhuma vantagem em termos de qualidade de som.
A chegada do MP3 doeu nos CDs mais do que nos discos de vinil e os CDs (que não ofereciam nenhuma vantagem sônica ou estética em relação aos arquivos digitais) se tornaram uma estação obsoleta para o MP3, que era mais móvel e economizava espaço. Como ele poderia ser copiado infinitamente sem perda de qualidade, um disco baixado ilegalmente não era nada diferente de um comprado pelas vias legais [...] Enquanto isso, as desvantagens anteriores do vinil agora eram atraentes. Eles são grandes e pesados, exigem dinheiro, esforço e gosto para serem criados, comprados e tocados e pedem para ser dissecados e examinados. Como os consumidores gastam dinheiro com os discos, eles ganham uma real sensação de propriedade sobre a música, que se traduz em orgulho. Isso tem graça (SAX, 2017).
Os músicos também têm demonstrado cada vez mais interesse em gravar de maneira analógica. Hoje em dia é possível modificar as faixas a bel prazer em modernos estúdios de mixagem, preservando só as melhores partes de cada execução ou aplicando programas para corrigir a afinação do vocalista. Esse processo retira as dimensões do imprevisível e da falha que como um sinal de espontaneidade enriquece a música.
Durante a mixagem de I Am The Walrus, Scott estava mexendo nos botões de fade, John Lennon martelava o piano, Paul McCartney cutucava um reverberador de fitas, George Harrison fazia ruídos em um microfone e Ringo estava mudando as estações de rádio, acrescentando aquilo ao caos. De repente, Ringo caiu em uma transmissão da BBC da peça Rei Lear e o contraste entre Shakespeare e a viagem lisérgica de áudio fez história (SAX, 2017).
No frigir dos ovos, o vinil é um contato íntimo com a música que é capaz de superar o seu deslocamento no tempo e as camadas de poeira no caminho da agulha. Retirar o disco do encarte, observar a arte da capa, posicionar ele no tocador, esperar a agulha se deslocar delicadamente até atingir sua superfície e aguardar aquele sutil momento entre o leve chiado pouco antes do primeiro acorde ressoar é uma experiência que envolve os sentidos. O que o diferencia o vinil do “moderno” e da “música atual” é o que o faz tão especial.
O mundo real não é preto e branco. Não é mesmo cinza. A realidade é multicolorida, possui texturas infinitas e camadas emotivas. Ela tem um cheiro esquisito e um gosto estranho e se refestela na imperfeição humana. As melhores ideias surgem desta complexidade, que está além da capacidade de apreciação através da tecnologia digital. O real importa hoje, mais do que nunca (SAX, 2017).1
Se você se interessou pelo assunto, confira essa playlist no Youtube.
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Enquanto finalizava essa edição, fiquei sabendo das mortes de Rolando Boldrin e Gal Costa, ambos no dia 09 de novembro de 2022. Não poderia deixar de comentar a imensa perda de dois representantes importantes da música nacional. Confesso que conheço pouco de suas obras, mas sou capaz de reconhecer a grandiosidade de suas carreiras. A partida de Boldrin, em especial, me fez lembrar do meu avô, falecido a 10 anos, que era muito seu fã e ouvia suas músicas no K7.
É isso por hoje, tchau.
Todas as citações forma retiradas do livro A Vingança do Analógico: Por que os objetos de verdade ainda são importantes, David Sax (Rocco, 2017).
mundinhodosapaixonadosporvinil.com.br
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Feliz de ter entrado (retornado?) a este mundo este ano. Vida longa ao vinil!