Essa é uma republicação da edição de Dezembro de 2022. Escolhi uma das edições que mais gostei de escrever para comemorar o newsletteraço: uma ação entre escritores de newsletter para divulgar seus escritos. No final da edição você encontra os links de todos os participantes.
Obrigatoriamente você tem que escutar a playlist a baixo enquanto lê o texto, ok?
Então ok.
Se você pesquisar por aí o que é música gótica, ou rock gótico, provavelmente a primeira definição que o Google irá entregar é a denominação post punk. E ok, isso é verdade, mas sempre achei esse termo muito abrangente, afinal, até o Barões da Pisadinha é post punk (rsrsrs).
Mas tentando explicar sobre: p post punk tem suas raízes na Inglaterra e era uma nomenclatura utilizada para determinar um gênero musical que surge a através e a partir da decadência do punk. Enquanto o punk era rebelde, esculachado e politizado, os góticos eram introspectivos, sombrios, poéticos e ligados as artes, mas não menos politizados por isso (fique até o final para entender). Enquanto gênero, o punk utilizava majoritariamente baixo, guitarra e bateria1, o post punk soma a equação contrabaixo e bateria eletrônicas e teclado. Outras características marcantes são as letras introspectivas, por vezes niilistas e com uma temática fortemente relacionada à morte, religiosidade, elementos do terror e da literatura clássica do gênero; vocal grave, dramático e ecoante; linhas de baixo pesadas e graves; bateria eletrônica numa batida constante e marcada, com poucas variações; e o reverb, um efeito muito interessante que contribui para a atmosfera soturna construída pela música gótica.
Há algumas teorias sobre de onde surgiu o termo rock gótico ou quem foi a primeira banda a lançar a música que iniciou o movimento. Entre os candidatos está o álbum The Scream (1978) da Siouxsie and the Banshees e Unknown Pleasures (1979) do Joy Division, além do lançamento da I-C-Ô-N-I-C-A Bela Lugosi’s Dead (1979) do Bauhaus. Particularmente, voto no Bauhaus como banda que inaugura o movimento não apenas pela sonoridade em si, mas por juntar outros elementos como o cinema, vampiros e arquitetura.
O glam rock foi uma grande influência para a música gótica, especialmente na estética e performática, sendo David Bowie um dos representantes mais citados. Em 1983, Bowie marcaria definitivamente o movimento com o lançamento do filme The Hunger, ou Fome de Viver, em que interpreta o vampiro John. Junto com sua parceira Miriam (Catherine Deneuve), John é introduzido no filme ao som de nada mais nada menos do que Bela Lugosi’s Dead enquanto procura por sua próxima vítima.
O elo entre os góticos e o cinema é ainda mais antigo. O expressionismo alemão, um movimento cinematográfico interessantíssimo que retratava de forma dramática e teatral as dores e incertezas de uma Alemanha assolada pela Primeira Guerra Mundial é possivelmente o começo dessa frutífera amizade. Com frequência os filmes desse período tratam de temáticas relacionadas a loucura e a perda das faculdades mentais, que pode ser relacionado ao plano político que o país atravessava. Quem pode ser são ou feliz em meio a tanto caos e incertezas?
O cinema expressionista retratou um mundo estranho, reduzido a uma tela de projeção de conteúdos que o sujeito não reconhece como seus. Enclausurado em sua loucura, o indivíduo perde a capacidade de reconhecer o mundo em sua objetividade e somente o percebe como um universo povoado por fantasmas que o perseguem e o ameaçam. Impedido de contato com o mundo real, o indivíduo estranha seus próprios pensamentos, que se tornam seu outro. 2
É claro que os dois movimentos, o góticos e o expressionismo alemão, possuem suas particularidades e características, mas de certa forma, vejo uma espécie de correspondência entre os dois especialmente no que tange as concepções do fantástico. Não apenas pela temática e pela tragédia, mas esteticamente os personagens do expressionismo alemão como Nosferatu (1922) e Fausto (1926) ambos do diretor F. W. Murnau e O Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene lembram consagrados nomes do rock gótico.
Fausto, e em grande medida o próprio Drácula, aqui transformado em Nosferatu, são narrativas com capacidade para discutir o mundo do trabalho e as angústias que o processo de expansão capitalista imprimiram na Europa no início do século XX. A abrupta mudança na lógica produtiva e, consequentemente, na distribuição e acesso a recursos causou processos de sofrimento materiais, psíquico e transformou o construto ideológico da época. Sobre Fausto, Marshall Berman (1982) aponta:
Os problemas de Fausto não são apenas seus: eles dramatizam tensões mais amplas, que agitaram todas as sociedades européias nos anos que antecedem a Revolução Francesa e a Revolução Industrial [...]. Assistimos ao nascimento de uma nova divisão social do trabalho, uma nova vocação, uma nova relação entre ideias e vida prática. Dois movimentos históricos se convergem ai e começam a fluir juntos. Um grande ideal do espírito e da cultura em emergente realidade material e social.3
O nascimento e florescimento da música gótica, no final dos anos 70 na Inglaterra também marcou um momento de transformação capitalista dessa vez expressado no liberalismo econômico e na tenebrosa administração de Margaret Thatcher. No Brasil, a música gótica encontrou expressão no mesmo período enquanto atravessamos a Ditadura Militar junto com boa parte de nossos irmãos latinos americanos. A tristeza, a morte, a desesperança, a incerteza, o medo e a loucura eram temas presentes na realidade cotidiana. Em uma sociedade capitalista em que essa lógica domina não apenas as relações de trabalho, mas também o campo das ideias e das subjetividades, o estranho é ser feliz.
Com o tempo, o gótico se transformou e se ramificou. As bandas que, no decorrer dos anos 80, optaram por um estilo mais “limpo” e pop foram intituladas de new wave, enquanto que as bandas mais sombrias de post punk. Hoje, uma série de estilos como dark wave, synth pop e o industrial, por exemplo, são denominados como post punk. Na minha humilde opinião, o indie também cabe debaixo desse guarda chuva. A banda She Wants Revenge, é um ótimo exemplo disso já que, apesar de enquadrada como indie, possui todas as características que citei sobre a música gótica. O clipe linkado abaixo, Written in Blood, é uma referência ao Fome de Viver.
Como comentei, no Brasil a música gótica foi muito popular sendo que um dos clubes mais icônicos de São Paulo, o antigo Madame Satã (atualmente conhecido apenas como Madame) era e ainda é dedicado ao estilo. Algumas bandas nitidamente pertencem ao estilo como Cabine C e Legião Urbana, mas as vozes da minha cabeça dizem que bandas como Uns e Outros, Marina Lima, Engenheiros do Hawaii, Kid Abelha, e Camisa de Vênus, por exemplo, foram fortemente influenciadas pelo movimento, sobretudo na fase dos anos 80.
Penso na transição do punk para o góticos como um movimento político, dois gêneros como consequências cíclicas. O punk é o o sentimento de efervescência e bravura de quem enfrenta o status quo e saúda a rainha ironicamente até o dia em que vira a esquina cansado, cabisbaixo, esbarra na desilusão e dá mão ao gótico. No meu primeiro texto na Querido Clássico, sobre Crepúsculo dos Deuses, escrevi que os clássicos são clássicos porque as décadas que separam o seu nascimento dos dias atuais não foram suficientes para esgotar tudo o que eles tinham para dizer e é por isso que o gótico está vivo, pelo bem ou pelo mal. A tristeza é muito mais do que um estado individual da alma, ela é política, subversiva, uma produção social na corda bamba entre a rebeldia e a desilusão, a pulsão de vida e de morte, o desespero do insano e o gozo da loucura.
Sensitivity almost a sensation
In a world of cruel and simple minds
May teardrops be our revolution
In confusion we will connectSadness is rebellion4
🌟 minhas bandas góticas favoritas 🌟
The Sisters of Mercy, britânicos, em atividade desde 1980.
Legião Urbana, brasileiros, em atividade de 1982 até 1996.
The Smiths, ingleses, em atividade de 1982 até 1987.
Plastique Noir, brasileiros, em atividade desde 2005.
The Cure, ingleses, em atividade desde 1978.
Cabine C, brasileiros, em atividade de 1984 até 1987.
Menção honrosa a nossa querida Lady Gaga que protagonizou um dos momentos mais deliciosamente góticos da atualidade em American Horror Story: Hotel. Ao som de She Wants Revenge (e The Sisters of Mercy), assistindo Nosferatu, com um belo homem a tiracolo, a mother monster serviu romantismo, sofrimento, looks, vampirismo e bissexualidade.
Para fechar, uma foto de quando eu estava empenhada em ter um visual gótico.
Não sei se funcionou.
É isso por hoje, tchau
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Dizem as más línguas que você nem precisava saber tocar os instrumentos, muito menos cantar. Era só subir no palco e fazer barulho.
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Sadness Is Rebellion - Lebanon Hanover
eu amo ser gótico eu amo ser tristeeeeeeeeeeeeee
Que incrível!