Edição Especial - Carta para a Amiga Secreta
Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.
Pelo terceiro ano consecutivo, participo de um amigo secreto entre escritores de newsletter. O role é o de sempre: sorteamos o amigo secreto, mas o presente é uma carta. Esse ano a minha amiga secreta é a
da newsletter se eu tivesse um blog.Querida Maju,
confesso que não conhecia a sua newsletter ainda, mas esse erro foi corrigido. Você é uma habilidosa, cativante e delicada comunicadora e eu adorei te ler. Selecionei dois textos seus que em particular falaram muito comigo. Espero que goste dessa carta e que ela te traga felicidade.
#1 - Se eu tivesse um blog, escreveria sobre a cultura da dieta
Esse artigo falou muito comigo e adivinha por quê? Exatamente, porque eu também sou uma mulher gorda e enfrento as mesmas inquietações que você. Quando você relata suas observações acerca da comunidade criada por uma conhecida que fez bariátrica e diz que
Nas publicações feitas para chamar o público para essa comunidade, as histórias variavam, mas voltavam sempre para um mesmo ponto-chave: quando eu era gorda, era incapaz de ser feliz. Mas depois que eu emagreci, tudo mudou. Agora eu tenho confiança no meu trabalho. Na imagem que eu passo. Na minha capacidade física. Olha só, eu emagreci e agora posso correr. Agora posso pedalar. Agora faço mais dinheiro. Agora, magra, sim. Antes, gorda, não.
Esse discurso é cruel. E é especialmente cruel porque é mentira. Mas é suficientemente sedutor para não ser percebido de imediato.
Realmente, esse discurso é cruel. Para dizer o mínimo. Até hoje eu ainda me pego pensando que todos os problemas da minha vida se resolveriam se eu emagrecesse. E sabe o que é pior? Talvez alguns problemas realmente se dissolveriam porque as pessoas me olhariam diferente e isso talvez refletisse na minha auto estima. Talvez por saber que isso é uma ilusão, afinal se eu só mereço ser tratada com respeito e amor, e pior, só tenho direito de ser feliz, se estiver magra, eu não me esforce - e nem pretendo - tanto para isso. Mas que dói, dói.
Frequentemente me olho no espelho e até me acho bonita, inclusive gosto do meu corpo. O problema é quando eu tenho que sair de casa e encarar a vida porque eu sei que lá as pessoas não vão me olhar com o mesmo carinho. Sei que os homens vão me achar menos atraente, que as vendedoras das lojas vão dizer que não tem roupa do meu tamanho e que os familiares vão me perguntar porque eu não faço a dieta da lua, do sol e do mar ou que eu sou gordinha, mas sou uma gordinha bonita.
Para além das questões do percentual de gordura no corpo, mas conectado com esse assunto, tenho pensado muito na nossa relação com a comida. Tenho a impressão que o discurso médico recentemente tem seguido um caminho perigoso (como se isso nunca tivesse acontecido antes): várias vezes vi vídeos de nutricionista falando que é melhor comer margarina do que manteiga ou tomar coca zero do que beber suco de laranja. E sabe porque? Porque se você quer emagrecer, a margarina e a coca zero tem menos calorias e por isso é mais eficiente. Ok, mas é isso? A única coisa importante que merece ser considerada é o fator “engordante” do produto? Isso quer dizer que se tiver chumbinho na composição da coca cola eu posso tomar, desde que não engorde? A
escreveu sobre isso - e eu me senti muito contemplada quando li - na edição Terrorismo nutricional e pequenos agricultores #99. Vale muito a pena a leitura!Me parece que há duas coisas importantes na construção do corpo ideal da nossa época: nutricionistas, médicos e outros profissionais do ramo mantendo discursos como os que eu citei acima & a indústria de processados e ultraprocessados. Pensa comigo: o modo de produção capitalista - falando de comida, o agronegócio mandou um beijo forte - está destruindo a natureza, elemento inerente para a produção de comida saudável. Os homens sempre vão precisar comer, mas se não há um ecossistema saudável, como produzir comida? É aí o X da questão. A bolacha recheada depende menos da terra do que o pé de alface. As pessoas precisam ser convencidas de que comer ultraprocessados é benéfico para elas, já que a necessidade de comer nunca será extinta ainda que os meios de produzir comida sejam. Recebeu o beijo gelado da morte do agronegócio enviado no início do parágrafo? Pois é, para eles o discurso do ultraprocessado também é interessante visto que ele é o principal inimigo da agricultura familiar responsável por produzir, a duras penas, diga-se de passagem, comida saudável, de qualidade e variada. Tomar coca zero no lugar do suco de laranja pode ser mais político do que parece.
Ah, não esqueçamos também que espremer laranjas - mesmo que você tenha um espremedor automático - demora mais do que abrir a lata de coca e o tempo é fundamental nessa equação. Escolher, higienizar e preparar alimentos leva tempo, um elemento cada vez mais escasso devido a lógica capitalista de trabalho. Sabe o que mais exige tempo? O processo de sociabilidade envolvido no preparo de uma refeição. Cozinhar e comer também é conversar, é dar risada, é se indignar com as injustiças do mundo, é fofocar… Entre amigos, familiares ou até mesmo sozinho, essa dinâmica é importante para movimentar as engrenagens da nossa cabeça.
Pensando nisso, me parece ainda mais contraditório que a sociedade exija um corpo magro, sarado e baseado no ideal do sanduíche natural, no pudim de chia e na meta de proteína batida no dia graças ao whey vegano de uma marca qualquer. No meio de um possível deserto alimentício eu ainda terei que me preocupar com isso? É doentio, você não acha?
Faz sentido ou viajei demais?
Enfim, pensar no que comemos, como comemos e de onde essa comida vem também tem me ajudado a manter uma relação mais amorosa e feliz com meu corpo. Como citei, a newsletter Jornal do Veneno é um ótimo lugar para refletir sobre isso. Indico também a Joio e o Trigo que inclusive tem matérias interessantes sobre a coca cola, uma senhora empresa que tem interesses muito mais profundos do que convencer nutricionista que ela é melhor do que suco natural.
Para plantar e crescer, para lutar pelo fim do capitalismo e para viver precisamos de tempo e é nesse gancho que vamos para o próximo texto.
# 2- Se eu tivesse um blog, escreveria sobre o tempo das relações
A segunda edição que conversou muito comigo foi a que você fala sobre Orgulho e Preconceito. Coincidentemente eu li seu texto um dia após ter terminado o livro e tive reflexões muito parecidas com as suas. Eu estou nessa vibe de pensar sobre o tempo e suas dimensões há algum tempo rsrs inclusive escrevi muito sobre isso na minha carta do ano passado. Nela eu comentei como ler O Morro dos Ventos Uivantes (Emilly Brontë) foi uma experiência muito significativa por uma série de questões, mas também me transportava para um lugar totalmente diferente do meu, em que o tempo passava mais devagar, os amores e os desafetos se construíam lentamente na mesma medida em que eram imediatos.
Em Orgulho e Preconceito tive sensação parecida e além de me surpreender com a complexidade dos temas tratados. Já ouvi muita gente dizer que essa obra é boba, mas eu discordo. Acho que esse argumento parte muito de um discurso machista, e porque não, de tratar temas como o casamento, algo amplamente abordado na obra, como algo tolo se partindo do ponto de vista de uma mulher. O casamento, no contexto em que a obra se passa, era uma dos poucos meios de ascensão social que as mulheres dispunham além de representar uma maneira de conquistar alguma segurança financeira, como é o caso da família de Elizabeth. Se casar naquele momento histórico podia ser também uma forma de resistência assim como recusar esse preceito, ou, ousando ainda mais, se divorciar como em A Inquilina de Wildfell Hall (Anne Brontë).
Além disso, Orgulho e Preconceito fala sobre um sistema de disputa, distribuição e herança de terras que deve ser considerado. A propriedade onde a família Bennet mora pertence ao patriarca da família, o senhor Bennet. Segundo as regras de herança explicitadas na obra, a propriedade poderia ser herdada apenas por um filho homem. Entretanto, o senhor Bennet tem apenas cinco meninas, entre elas Elizabeth. Assim, pós a morte do senhor Bennet, a propriedade será herdado por seu sucessor masculino mais próximo, que nesse caso é seu primo distante, o senhor Collins. Isso significa que após a morte do senhor Bennet, o senhor Collins pode expulsar as meninas que ainda residam nas terras bem como a viúva. Portanto, a mãe de Elizabeth não se preocupava em casar as filhas porque ela era fútil e interesseira, mas sim porque isso representava a possibilidade de um ter um lar estável e afastar, literalmente, a perspectiva de ficar desabrigada.
A trama revela uma expressiva complexidade no que diz respeito às relações sociais e sobretudo de classe que permeavam a vida das personagens e não apenas, mas também das pessoas reais atravessando a Inglaterra do século XIX.
É importante ressaltar que o momento histórico em que a obra é composta se refere ao processo de gênese do capitalismo e as suas bases rurais, portanto a disputa por terras, seu uso e distribuição são elementos centrais nessa sociedade.
Jane Austen escrevia sobre o seu tempo e não há demérito nenhum nisso, muito pelo contrário, é isso que a faz tão especial. É preciso coragem e sensibilidade para escrever sobre a própria realidade.
Além disso tudo, existe a questão do tempo que mencionei acima e que você refere no seu texto.
E o quão interessante é que um romance onde as coisas demoram, levam tempo pra acontecer, faça tanto sucesso até hoje. Leva tempo pra terminar de ler. Leva tempo para as coisas mudarem. Leva tempo para as emoções extremas passarem, como a raiva e a tristeza que a Elizabeth sentiu ao ouvir Mr. Darcy fazendo pouco caso da aparência dela. A melancolia da Jane se arrasta com a partida do Mr. Bingley — mesmo tentando esconder essa emoção com todas as forças. Leva tempo para a dupla principal de amantes se entender, se conhecer, ajustar a linguagem para se fazerem compreendidos. Leva tempo para amar.
Se eu tivesse um blog, escreveria sobre o tempo das relações
Eu sinto o mesmo que você. Leva tempo para os eventos se desenrolarem e é exatamente isso que faz tudo tão mágico. Esse tempo escapa pelas nossas mãos nos dias de hoje e nada mais pode ser degustado, apenas engolido. Uma das peças temporais que mais amo dessa obra são as personagens caminhando. A famigerada parte em que Elizabeth caminha para ver Jane que está na propriedade dos Bingley e suja a barra do vestido de lama é uma das coisas mais sinceras, genuínas e bonitas que eu já vi.
— Andar três ou quatro milhas, ou cinco milhas, ou lá o que seja, com os tornozelos metidos na lama, e sozinha, inteiramente sozinha! Que significa isto? Parece-me mostrar um conceito abominável de independência, uma indiferença toda campestre da mais elementar decência. Orgulho e Preconceito - Jane Austen.
Nesse sentido acho que o filme fez bem. Aquelas cenas amplas em que as pessoas parecem muito pequenas em relação à natureza e aos cenários em geral nos dão essa sensação de tempo e espaço magnânimos.
Confesso que me identifico muito com Lizzie nesses momentos. Eu adoro caminhar, mas pela cidade, sem rumo. Há alguma coisa melancólica e sobrenatural na cidade que dorme. Particularmente amo fazer isso de madrugada e me sinto genuinamente triste por não poder caminhar sozinha. Sempre que posso, alugo algum amigo homem para essas aventuras.
Falando sobre a paixão, achei essa sua reflexão muito pertinente e me senti pessoalmente atacada (e não, isso não é algo ruim apesar da fatalidade da palavra).
Sem querer cair num lugar de ai que ironia ser romântica na era da putaria, mas a vida hoje tem muita pressa. Deus nos livre de ter 30 anos e ainda não ter encontrado um romance arrebatador. Ou melhor, O romance arrebatador, o último que vamos viver nessa vida. E que além de tirar o chão debaixo dos nossos pés, seja também a materialização da segurança. E é muito importante que tenha as mesmas ideias, opiniões e uma aparência específica.
Que tenha o gosto certo, ame os filmes certos, as bandas certas, tenha os interesses certos, os hobbies certos, o jeito de postar no Instagram certo. O desejo certo, o jeito de trepar certo. E é bom tudo isso surgir e permanecer assim logo, porque se começar a namorar agora vai levar pelo menos uns dois anos pra ser razoável morar junta, e depois mais quanto tempo até ser okay casar.
Se eu tivesse um blog, escreveria sobre o tempo das relações
Para além de tudo que conversamos até agora, ler seu texto também me despertou esperança e sensibilidade quando penso em um novo amor, romântico ou não.
Por fim…
Como não se apaixonar por um homem que se declara para você dessa forma?
Os homens estúpidos são os únicos que vale a pena conhecer.
Orgulho e Preconceito - Jane Austen.
Brincadeira, meninas de 13 anos, não me levem a sério.
Dica final
Não sei se você conhece, mas a Querido Clássico é um site escrito por mulheres do qual faço parte do time de redatoras. Lá você vai encontrar váaaarios artigos maravilhosos sobre Jane Austen e suas obras. Se quiser conferir, fica a dica.
Pensamento final
Conectando nossos dois papos: você já pensou como comida, romance e capitalismo se conectam? Tenho refletido sobre, mas isso é papo para outro dia.
Dourados, MS, 20 de dezembro de 2024
A Maju foi minha amiga secreta e eu fui a da
que escreve a newsletter te escrevo cartas. Uma honra ser a amiga secreta de uma pessoa tão querida e talentosa! A edição que ela me escreveu fala sobre nostalgia que de certa forma se conecta com nosso tema, não é mesmo?É isso por hoje, tchau.
✨ Leia também minhas outras publicações na Querido Clássico e na cidade do pé junto! ✨
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eu já acompanho a newsletter da Maju, coisa boa ver a cartinha entre duas pessoas que eu conheço por aqui!
Ficou lindo esse diálogo! Adoro acompanhar daqui o amigo secreto. 💜