Tudo que eu sei é que você dirige uma Testarossa
e vive em um barco | Maio, junho e julho, 2024
É como eu sempre digo: antes tarde do que mais tarde ainda. Este ano, estou escrevendo pouco porque trabalhar me impede de fazer coisas que não me rendem dinheiro, mas me dão prazer, como escrever, por exemplo. Como diria Seu Madruga: “Não existe trabalho ruim; o ruim é ter que trabalhar.”
Na edição passada, fiz um apanhado dos álbuns dos meses de março e abril. Agora, selecionei três álbuns dos meses de maio, junho e julho. Esses são alguns dos discos mais ouvidos entre maio, junho e julho de 2024 neste bat-canal, segundo o Spotify.
Os três álbuns escolhidos têm uma conexão: todos têm músicas presentes na trilha sonora de Miami Vice, série policial exibida entre 1984 e 1989 e protagonizada por Don Johnson, como Sonny Crockett, e Philip Michael Thomas, como Ricardo Tubbs. Comecei a assistir achando que seria um show de horrores; afinal de contas, o que esperar de uma série policial estadunidense — no auge da Guerra às Drogas e da repressão violenta a regimes e revoluções latinas simpáticas à União Soviética — durante o governo Reagan? Para mim, a resposta era clara: a polícia seria retratada como heroica, justa e limpa, enquanto a população negra e latina levaria a culpa pela criminalidade. É claro que eu também esperava o filtro amarelo quando o episódio se passasse em países da América Central ou do Sul, mas acho que Hollywood ainda não tinha descoberto esse recurso.
Eu estava certa, mas também estava errada. Surpreendentemente, Miami Vice tem muitos episódios que denunciam a corrupção da polícia e dos órgãos governamentais, o envolvimento do capital financeiro e dos interesses da burguesia na promoção da criminalidade e das drogas. Falta dar nome aos bois, como no episódio Stone’s War, que comentarei adiante, e é claro que a atuação policial ainda é representada como necessária e indispensável, ignorando que sua constituição como instituição é parte do problema. Mas, nesse sentido, Miami Vice tem sacadas interessantes.
Os personagens principais, o detetive Crockett e Tubbs, eram um homem branco e um homem negro, respectivamente. Eu e você sabemos que os Estados Unidos são um país altamente racista e que os anos 80 foram bastante cruéis com a comunidade negra por diversos motivos, entre eles o encarceramento em massa em decorrência da Guerra às Drogas. Um policial branco e um policial negro foi uma grande jogada, que, aliás, funcionou em muitas produções; afinal, se um homem negro pode ser detetive, isso significa que a meritocracia funcionou e os aparatos estatais de repressão não são racistas.
A moral da história é que, dentro das devidas proporções, Miami Vice é uma série complexa e interessante. Também é nostálgica, mesmo para quem não viveu os anos 80 ou não assistiu na televisão, como a minha mãe, que, aliás, tem revisto comigo agora. É uma curtição ver Crockett e Tubbs na Ferrari Daytona — que, na terceira temporada, no episódio Stone’s War, é substituída por uma Ferrari Testarossa — percorrendo as noites úmidas e perigosas de Miami ao som de de Phil Collins.
Dito isso, vamos ao que interessa.
Um dos escolhidos da vez foi 🥁rufem os tambores🥁 Brothers in Arms (1985) do Dire Straits.
Provavelmente já contei aqui, mas, por não me lembrar ao certo, contarei de novo. Quando eu era pequena, meu tio tinha uma coleção enorme de discos e meu avô, de fitas K7. Meu tio era mais eclético, enquanto meu avô ouvia basicamente sertanejo (importante pontuar que não existia sertanejo universitário há 20 anos, quando eu era criança). Também tinha meu vizinho, que ouvia Modern Talking e ABBA, contribuindo para moldar meu gosto musical. O Dire Straits estava no meio dessa mistura, e é daí que eu conheço a banda.
No episódio Knock, Knock... Who's There? (S03EP21) de Miami Vice, Ride Across the River do álbum Brothers in Arms é incorporada à trilha sonora. O episódio gira em torno da policial Linda Colby, uma agente do DEA que, na tentativa de salvar o filho, que está gravemente doente, acaba se envolvendo com o traficante de drogas Esteban Montoya, investigado por Crockett e Tubbs.
Quando a música tocou no episódio, reconheci a voz mansa e sensual do Mark Knopfler e imediatamente consultei o TuneFind, um site para encontrar músicas de filmes e séries. Brothers in Arms não é o álbum mais famoso da banda britânica à toa: as letras são elaboradas e as melodias de uma elegância pouco explorada no rock.
O próximo é 🥁rufem os tambores🥁 Mercy de Steve Jones lançado em Miami Vice II - Original TV Soundtrack (1986).
Mercy, do cantor inglês Steve Jones, à época ex-guitarrista do Sex Pistols, não é exatamente um álbum, mas um single que foi incorporado ao disco Miami Vice II - Original TV Soundtrack.
O episódio Stone’s War (S03EP02) começa com Mercy tocando enquanto mostra imagens da Nicarágua, aparentemente em algum pequeno vilarejo, e seus habitantes realizando afazeres do dia a dia. Nos muros, é possível ler dizeres como "Sandino Vive" e "Morte ao Imperialismo", em espanhol. Em seguida, o local é bombardeado e um conflito armado entre dois grupos se inicia. Os civis tentam se abrigar em uma igreja, e o padre, tentando ajudar os fiéis, é alvejado à queima-roupa. Assistindo a essa cena, em um canto, está Stone e seu amigo cameraman1, que filmou a morte do padre, bem como a face do assassino, que, por sua vez, é estadunidense. Ao perceber que foi filmado, o matador atira no cameraman, que, ferido, pede ajuda ao amigo. Stone, entretanto, pega a câmera e foge. Retornando aos Estados Unidos, Stone pretende vender a gravação para alguma emissora, mas começa a ser perseguido pelo homem que filmou e pede ajuda a Crockett para se salvar.
No decorrer do episódio, revela-se que o assassino estadunidense filmado por Stone, que atende pelo nome de O’Hara, era membro de um grupo armado liderado por Maynard. Os capangas de Maynard, por sua vez, eram amigos dos Contras, grupo financiado pelos Estados Unidos para derrubar a Revolução Sandinista na Nicarágua. O episódio, apesar de não relacionar a atuação dos Contras aos EUA diretamente — o que seria bastante ousado —, os linka a homens poderosos e cheios de dinheiro que financiavam tal barbárie. No final, Stone acaba morto pelos comparsas de Maynard, que foge e continua seu legado de terror. Na cena final, Crockett está em seu barco quando ouve uma notícia no rádio dizendo que o padre morto, que também era estadunidense em missão na Nicarágua, foi morto pelos sandinistas.2 Uma mentira muito conveniente.
Mercy é uma música greve e emocionante, bem produzida e que se encaixou como uma luva no episódio. Não consigo mais ouvi-la sem pensar em Miami Vice.
E por fim 🥁rufem os tambores🥁 God’s Own Medicine (1986) do The Mission.
O episódio Theresa (S03EP16) tem como trilha a canção Wasteland, do The Mission UK, além da participação de Helena Bonham Carter como Theresa, namorada de Crockett.
Theresa é uma médica viciada em drogas que se envolve com Crockett, que a princípio não sabe do vício da namorada. Entretanto, os fornecedores de Theresa sabem de seu envolvimento com o policial e a chantageiam para conseguir informações da polícia através de Crockett. Ela se nega, mas é ameaçada de ter seu vício exposto, o que causaria indisposições no conselho de medicina. Com medo de perder sua licença para atuar como médica, Theresa cede e repassa informações importantes da polícia para seus traficantes. No final, ela vai para uma clínica de reabilitação, e Crockett fica sozinho com o anel de noivado que planejava lhe dar.
The Mission Uk, ou apenas The Mission, é uma banda de rock gótico inglesa formada em 1986 por dois ex -membros do Sisters Of Mercy. O referido disco é simplesmente delicioso, melancólico, sombrio e dançante como toda boa canção do estilo. Os maiores sucesso do The Mission estão nesse álbum como a citada Wasteland e Severina.
Bônus:
A trilha sonora original, como o tema de abertura e das personagens, foi escrita e executada por Jan Hammer. O disco Escape From Television é composto por essas canções e foi lançado em 1987.
Ainda não terminei todas as temporadas de Miami Vice, mas, conforme assisto, adiciono as músicas legais nessa playlist. Com certeza muitas estão faltando, mas fica o link a quem interessar. Embora eu ame o Phil Collins, e Miami Vice tenha aparentemente comprado todo seu catálogo de música, não falei sobre ele porque não aparece na seleção. O Glenn Frey apareceu, mas já comentei sobre ele em outra oportunidade.
⭐recomendações que ninguém pediu⭐
❤️ Honeymoon Suite (1984) da Honeymoon Suite
Banda canadense de hardrock. Disco delicioso, capa criativa. Descobri a banda — adivinha onde? — em Miami Vice.
❤️ The River (1980) do Bruce Springsteen
Não precisa de propaganda, é o boss. Confia!
É isso por hoje, tchau.
📅 lembretes que ninguém pediu 📅
Junho foi o aniversário de 2 anos da resenhas que ninguém pediu. Para comemorar, abri um formulário pedindo para os leitores enviarem histórias sobre músicas que marcaram suas vidas.
A Sofia (
) escreve de Curitiba, no Paraná, e me envio um relato muito legal sobre como a Blue Monday do New Order marcou um antigo amor.Música que marcou o início de um romance... inacreditavelmente foi bem quando o New Order fez show em Curitiba e a música não parava de tocar nas rádios, nas festas, parecia uma coincidência!! Marcou muito pois é um clássico e até hoje quando toca lembro dessa época. Infelizmente hoje não estamos mais juntos mas essa música ainda conforta meu coração <3
✨ Leia também minhas outras publicações na Querido Clássico e na cidade do pé junto! ✨
Não sei dizer se essa cena é inspirada no caso de Leonardo Henrichsen, mas bem que poderia ser. Leonardo Henrichsen foi um repórter argentino que filmou a própria morte. Enquanto cobria o Tanquetazo, Henrichsen foi baleado por militares, e sua câmera filmou o exato momento em que isso aconteceu. Na gravação, vemos os tiros disparados contra ele, a câmera cambaleando até que cai no chão. O Tanquetazo foi um movimento protagonizado pelas forças armadas que pretendia derrubar o governo de Salvador Allende no Chile, e aconteceu 73 dias antes do Golpe Militar que resultou na morte de Allende, na ascensão de Pinochet e no início de uma das piores ditaduras militares da América do Sul.
Se quiser saber mais, assista o vídeo Por que odiamos? Ep. 5: Ronald Reagan da História Pública. O historiador comunista Ian Neves traça um panorama sobre diversos acontecimentos do governo Reagan, inclusive a supressão da Revolução Sandinista.
tava com saudade da sua news! fiquei curiosa com miami vice, terminei uma outra série clássica, mas dos anos 00: sopranos. já viu? beijocas
dire straits é uma banda muito única. eu amo! <3